Canibalismo de palavras
O capítulo “
Dos Canibais” se abre com a retomada literal de alguns comentários de Urbain Chauveton sobre
Nova História do Novo Mundo de Girolamo Benzoni, que refuta a hipótese segundo a qual a América seria um vestígio da Atlântida ou uma área de expansão das antigas colônias cartaginesas. O empréstimo literal de Chauveton feito por Montaigne e, também, o discurso de
Michel de l’Hospital pronunciado diante do parlamento de Bordeaux, serve para mostrar a flutuação não apenas de nossos conhecimentos, mas do próprio mundo, como prova o movimento das dunas do Médoc, esses “grandes montes de areias moventes” ou, em outras palavras, essas montanhas de areia que o oceano vai empurrando à sua frente e que “invadem a terra firme”. A relatividade de nossos conhecimentos assemelha-se a essas areias moventes que vão avançando e transformam terras férteis em “magras pastagens”.
Em seguida, o ataque contra os « cosmógrafos » retoma o prefácio da História de uma viagem feita à terra do Brasil, em que Jean de Léry fulminava André Thevet, promovido, após seus périplos no Levante e na América, a “cosmógrafo do rei”. A História de uma viagem de Léry já é esta “narração particular” que Montaigne preconizará. Na falta de uma ciência universal, ele faz valer o testemunho de um de seus criados, “homem simples e grosseiro”, que passou dez ou doze anos no Brasil, dali trazendo redes, plumarias e paus-de-chuva. Seu autor cumpre à perfeição o programa modesto do “topógrafo”, antítese perfeita do presunçoso cosmógrafo universal.
Para Montaigne, o Canibal da América é um pouco a reencarnação do gimnosofista, cuja simplicidade transportava de admiração os antigos gregos. Neste lugar outro, mais sonhado que visto, “não existe nenhuma espécie de tráfico; nenhum conhecimento de letras; nenhuma ciência dos números; nenhum nome de magistrado, nem superioridade política; nenhuma servidão; nenhuma riqueza ou pobreza; nenhum contrato; nenhuma sucessão; nenhuma partilha; nenhuma ocupação além das ociosas; nenhum respeito de parentesco além do comum; nenhuma roupa; nenhuma agricultura; nenhum metal; nenhum uso de vinho ou trigo. Nem mesmo as palavras que significam a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a difamação, o perdão”.
A fórmula negativa – “eles não têm nenhum, nenhuma, nem, nem...” tende a alegorizar o selvagem, a separá-lo de sua realidade etnográfica, na qual efetivamente ele exerce a agricultura, se dedica à economia de troca e reconhece um sistema de parentesco extremamente complexo. Desse modo o ameríndio supera até mesmo “todas as pinturas com que a poesia embelezou a idade dourada”. A idade de ouro, idade de abundância, tal é o modelo que comanda a fórmula negativa. Esta apologia do índio, em quem revivem as virtudes heroicas de um Leônidas ou de um Ischolas, desemboca no reconhecimento do relativismo das culturas: “Cada um chama de barbárie o que não é de seu uso.”
Leitor desta passagem dos
Ensaios, na tradução de John Florio, William Shakespeare atribui ao velho Gonzalo de
A Tempestade a mesma enumeração admirativa. Na boca deste velho um pouco gagá, a fórmula negativa adquire uma feição irônica. O meio-negro Caliban, anagrama de “Canibal”, logo traz a esta divagação um desmentido implacável. Gonzalo é ridiculizado pelos outros personagens. Seu Estado Ideal não tem a menor chance de se concretizar. Gonzalo não é rei, e não tem nenhuma pretensão a sê-lo.
Ao termo paradoxo, usado para designar essa passagem de Montaigne, podemos preferir o de “declamação”, que designa o exercício de desenvolvimento oratório sobre um dado tema que os retores recomendavam para o treino do orador. Lei e causa fictícias levam a um processo fictício, nisso consiste a declamação. Trata-se de um “ensaio” no sentido estrito do termo, exercício de pensamento sem fronteiras e sem rédeas. A acrobacia é ainda mais perigosa por brincar com os mais bem ancorados tabus do cristianismo: nudez, poligamia, canibalismo; recriminações contra as esposas de aquém-mar, combinação sabiamente dosada de razões médicas, sociológicas e morais no caso da antropofagia, pirueta do calção (ou do culote) que finaliza bruscamente o capítulo. Entre as fontes de Montaigne, uma das mais prováveis é
La Pazzia, libelo publicado em Veneza em 1554 e traduzido em francês já em 1566 com o título
Louanges de la Folie [Louvores à Loucura]. Esse “tratado muito bem-humorado em forma de paradoxo”, inspirado em Erasmo, refere-se a um povo descoberto na Índia Ocidental, “que bem-aventurado sem leis, sem letras e sem sábios de qualquer espécie”, vivia a melhor vida do mundo.
O que está em jogo nas guerras canibais é absolutamente moral e nada tem a ver com a apropriação de quaisquer bens materiais: terras produtivas que os ameríndios não têm para lavrar, riquezas que não possuem, corpos impróprios a qualquer outro exercício além da caça, da dança ou da guerra. Os Canibais não fazem escravos, e se acontece-lhes de transgredir os limites naturais, é para voltar, uma vez obtida a vitória, “às suas terras, onde não lhes falta nenhuma coisa necessária”. Os prisioneiros levam uma vida de homens livres, caçando em companhia de seus vencedores, amando uma mulher da tribo, e o fruto de sua execução será definitivamente menos material que simbólico.
A América é vasta demais para que se reproduza um cenário comparável ao do cerco de Alésia ou de Numância. É “para representar uma extrema vingança” que os Tupinambás devoram com gosto seus inimigos, não para se alimentar. Em sua guerra “absolutamente nobre e generosa”, não se trata nem de limites territoriais nem de sujeitar corpos. A carne do prisioneiro que se vai devorar não é de modo algum um alimento, é um signo, e é precisamente este signo que o vencedor ingere e faz seu. Ao anúncio de seu massacre e do festim que será feito às suas custas, os cativos replicam com desafios e acusações de covardia. Enquanto o assassinato do prisioneiro e a distribuição do menor “fiapo” de sua carne preenchiam capítulos inteiros em Thevet e Léry, Montaigne comete uma elipse deliberada. Em vez de uma narrativa circunstanciada, meras duas linhas: “Feito isso, eles o assam e o comem em comum e enviam fiapos aos amigos que estão ausentes”.
Assim como no
Elogio da Loucura, de Erasmo, a Loucura fala, em “Dos Canibais” cede-se, ao final, a palavra aos “Canibais”, que se exprimem sem freios e sem censura. Três deles desembarcam em Rouen, onde Montaigne pôde encontrá-los no outono de 1562, e lançam a seus interlocutores umas boas verdades, que fazem eco à
Servidão voluntária de Étienne de La Boétie. Em vez de admirar “a forma de uma bela cidade”, eles se espantam em ver um rei adolescente – o jovem Carlos IX, de doze anos de idade – comandar os robustos suíços de sua guarda. Como é possível que um ser tão fraco faça com que a ele se curvem sólidos rapagões que estariam bem mais aptos a comandar que ele? A surpresa das pessoas do Novo Mundo diante desses “homens feitos, de barba, fortes e armados”, que obedecem a uma criança, lembra a indignação oratória da
Servidão voluntária. « Que vício infeliz », exclamava La Boétie, que um número infinito de pessoas suporte a tirania, “não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um único homúnculo”, de um homenzinho qualquer “e no mais das vezes o mais covarde e efeminado da nação”!
A principal superioridade do rei, no país dos Canibais, não é a de marchar à frente de todos na guerra? Fora essas circunstâncias extremas, em que convém expor sua vida para salvar a comunidade, o rei perde qualquer espécie de prerrogativa.
Os Canibais, em Rouen, escandalizam-se também com a desigualdade que reina nas ruas. Ao ponto de temerem – ou desejarem, não sabemos bem – que os mendigos, “descarnados de fome e de pobreza”, que vagueiam nas portas dos ricos, os peguem pela goela, ou toquem fogo em suas casas. Da “perda triunfante” do canibal agonizante à profecia incendiária que um de seus irmãos dirige, do meio de uma das cidades deles, aos europeus intrigados, a mesma palavra vindicativa reflui, deslocada da vítima para o carrasco real ou simplesmente potencial. Assim é o europeu, cuja sociedade civil, dominada pelo antagonismo de ricos e pobres, ameaça explodir.
Para concluir, ou não concluir, tão grave reflexão, Montaigne finge exprimir reservas quanto ao elogio dos canibais, reservas puramente vestimentares: “Tudo isso não é nada mal: mas, como, eles não usam calção superior!?” Como acreditar neles? Eles não usam culote ! Definitivamente, eles não são sérios !