A voga dos Mistérios do Rio de Janeiro: Eugène Sue no Brasil

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Em 1844, quando o folhetim Os mistérios de Paris começa a ser lançado em português, Atar-Gull e A Salamandra são duas obras já conhecidas e apreciadas. O sucesso de Eugène Sue é enorme nesta sociedade fracamente alfabetizada e escravagista do Império.

 

 

Passadores culturais

Neste século extremamente francófilo, as elites dominam perfeitamente o francês. A cidade conta com livrarias e tipografias francesas. Bibliotecas (Biblioteca Nacional, Biblioteca Fluminense etc.) e gabinetes de leitura (o da senhorita Edet, o Real Gabinete Português de Leitura etc.) facilitam o acesso aos livros. Os catálogos dessas instituições oferecem em francês ou em português a maioria das obras de Eugène Sue. O surgimento do jornal e do folhetim facilitam também as leituras em voz alta da noite, nos serões, reunindo as gentes da casa.

Duas personagens desempenham um papel importante, Pierre Plancher, editor e livreiro, bonapartista exilado no Rio, fundador do Jornal do Commercio (1827), cotidiano que investe na publicação dos romances-folhetins, e Justiniano José da Rocha, tradutor e jornalista, que passara sua juventude em Paris e que assina as traduções dos maiores folhetins da época, entre eles Os Mistérios de Paris.

Os Mistérios de Paris

Neste romance social, o autor se apaga atrás de suas personagens para revelar a face oculta da sociedade: a miséria e o crime. Mostra os laços entre os bas-fonds e os bairros nobres. Nesse realismo romântico, o bem triunfa graças aos bons sentimentos.

Se no Journal des Débats o folhetim durou quase um ano e meio, no Jornal do Commercio ele dura menos de seis meses. Foram usados diversos subterfúgios editoriais, e o tradutor às vezes resumiu algumas passagens.

A recepção do folhetim

Seu impacto é tão grande que é citado por Martins Pena em sua comédia O Diletante (1844).

Segundo o costume, duas ou três versões de Os Mistérios de Paris, adaptados para o palco, são representados no Rio (1850-1851), depois são apresentadas as comédias A Família Morel e M. e Mme Pipelet dos Mistérios de Paris (1858) ; em novembro de 1859 é encenada a ópera Pipelet, com música de Serafino De Ferrari e libreto original de Rafaelle Berninzone, Pipelè ossia il portinaio di Parigi, traduzido por Machado de Assis.

Todo mundo conhece as personagens, mesmo sem ter lido o texto. Assim, Cabrion, o insuportável pintor que vive atazanando o zelador Alfred Pipelet, entra nos dicionários brasileiros como o substantivo “cabrião”, com o sentido de indivíduo maçante. Empresta também o seu nome, em São Paulo, ao periódico satírico de Angelo Agostini, Cabrião (1866-1867) [Em suas páginas, Cabrião e Pipelet, que se tornam amigos, zombam da política do momento.]

Le chourineur (« o Churinada »)  é o apelido dado pelos jornalistas da época ao Imperador D. Pedro II. Na Exposição Universal de 1867, La Louve é a referência do correspondente do Jornal do Commercio para designar a ilha de Billancourt, onde será realizada a exposição agrícola.

 

Uma explosão de mistérios

« Mistérios de … » é uma fórmula-convite ao diálogo com a obra fonte ou um argumento promocional pela magia do termo “mistério”. Ela se declina em: Os Mistérios do Brasil (1845), Os Mistérios da Bahia (1860), Os Mistérios da roça (1861), Os Mistérios de Recife (1875) e da Rua da Aurora (1891), O Mistério da Tijuca (1882) e Os Mistérios de Botucatu (1884).

Os Mistérios do Rio de Janeiro

A capital, entre 1854 e 1924, inspira oito autores. Os Mistérios do Rio de Janeiro e os legítimos deserdados (1854) de Antônio José Nunes Garcia permaneceu inacabado. Antonio Jeronymo Machado Braga escreve Os Mistérios do Rio de Janeiro ou os ladrões de casaca (Jornal do Commercio -1866  e 1874 no formato livro).

Neste mesmo ano são publicados Os Mistérios do Rio de Janeiro de Nyctostrátegus e, depois, Os verdadeiros mistérios do Rio de Janeiro (1880) de Paulo Marques, e finalmente, em fascículos, Os Mistérios do Rio de Janeiro (1881) de José da Rocha Leão.

Todos esses romances acontecem na época do Império, mostram a corrupção e o crime nessa sociedade em que reinam a lei do mais forte, a angústia frente à insegurança e o medo do senhor face a seus escravos (a abolição só será declarada em 1888).

Durante a República, proclamada em 1889, o Rio conhece uma importante modernização e se vê no dever de produzir um filme sobre a cidade (Paris teve sua primeira adaptação cinematográfica dos Mistérios... em 1909); é assim que em 25 de outubro de 1917, no Rio, é lançado Os Mistérios do Rio de Janeiro. Dos 6 episódios previstos, um único foi rodado. Coelho Netto era o responsável pelo roteiro.

Em 1918, Amador Santelmo faz do Rio de Janeiro a capital do crime com suas novelas policiais vendidas em fascículos: Os Mistérios do Rio de Janeiro (Memórias póstumas de um detetive carioca).

Finalmente em 1924, Benjamim Costallat publica uma série de crônicas-reportagens moralistas e sensacionalistas, Mistérios do Rio, encomenda do Jornal do Brasil.

Le Juif errant [O judeu errante] recebido de Lisboa em português, publicado no Diário do Rio de Janeiro (1844-1845), quando ainda não estava terminado na França, é também acolhido entusiasticamente. Pode-se ver um reflexo desse romance em As Tardes de um pintor (1847) de Teixeira e Sousa; e o padre Gusmão de Molina das Minas de Prata (1865-1866) de José de Alencar não deixa de lembrar o jesuíta Rodin.

Eugène Sue deu ao folhetim suas cartas de nobreza e, aos seus leitores, consciência social. Os mistérios de Paris, além de outras obras tais como Mathilde e Les mystères du peuple deixaram vestígios em inúmeros escritores.

 

Publicado em Outubro de 2023

 

LegendaLes Mystères de Parisd'Eugène Sue, C. Gosselin, 1842-1843

 

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