Métodos internacionais de uma literatura nacional: Brasil-França, século XIX

A publicação transatlântica dos melhores autores brasileiros do século XIX por editores franceses possibilita a compreensão de que a separação entre história literária nacional e internacional deve ser suplantada por um modelo globalizante de análise.

 

 

Nada mais nacional do que um editor estrangeiro

A Livraria-Editora Garnier e seus negócios foram, no século XIX, pioneiras do conúbio entre expansão internacional e especialização de atividades. Ela atuou durante grande parte dos séculos XIX e XX, sobretudo em três línguas (francês, espanhol e português), ocupando espaços nacionais europeus e americanos.

Casos como esse têm feito com que o estudo da circulação dos bens culturais torne-se mais completo, pois se consideram os contatos entre as diferentes partes do globo, a partir das transformações técnicas, da ampliação dos transportes e da comunicação, além dos fenômenos decorrentes da urbanização crescente, os quais resultaram, por exemplo, em programas de alfabetização em torno de uma língua nacional.

Estabelecidos no Brasil entre 1844 e 1934, a atuação internacional dos editores Garnier foi considerável na emergência da literatura brasileira. Para esse estudo, os catálogos reunidos na Bibliothèque nationale de France (fundo Q10B:1811-1924) constituem uma fonte importante, que revela detalhes sobre a circulação internacional dos textos e dos impressos, e sobre a atuação franco-americana das editoras Garnier Frères (Paris), Garnier Hermanos (Paris) e B.-L Garnier (Rio de Janeiro). A partir dos anos 1860, Baptiste-Louis Garnier, instalado no Brasil como comerciante desde 1844, passou a produzir, na Europa, como livros, alguns dos textos escritos no Brasil. Essas publicações eram divulgadas no país sul-americano por meio dos catálogos de livreiros e de editores ainda hoje conservados pela BnF, também compostos e publicados na França. Cruzando-se os dados extraídos desses catálogos com os indícios extraídos da materialidade das publicações ali anunciadas e, por fim, com as informações extraídas da Bibliographie de la France – Journal général de l’imprimerie (periódico disponibilizado para livre consulta na Gallica ou, fisicamente, na área de pesquisa da BnF, sala T da Bibliothèque de Recherche), podemos afirmar com certeza que a edição e a circulação de textos e de livros entre dois continentes, no século XIX, propiciam novos entendimentos à literatura brasileira, como consequência de práticas editoriais internacionais.

 

Nasce o mais importante escritor brasileiro: Machado de Assis

Um caso exemplar é a história editorial da consagração do mais importante escritor brasileiro, Machado de Assis (1839-1908). No início de sua trajetória como homem de letras, entre meados dos anos 1850 e meados dos anos 1860, ele vinha atuando como poeta e cronista, dramaturgo e crítico literário. O estudo de suas relações com Baptiste-Louis Garnier mostra que a prosa de ficção machadiana (contos, nos anos 1860, e romances, a partir de 1872), produção pela qual o escritor é especialmente célebre, são resultado de uma decisão editorial de Garnier, sendo o escritor um ator nesse processo de inflexão editorial. A partir de 1864, Machado de Assis tornou-se o principal ficcionista – produtor de narrativas curtas ou médias – do Jornal das Famílias (1863-1878), um periódico mensal que circulou durante quinze anos por várias províncias brasileiras e por pelo menos outros dois países, Portugal e França, cujo editor proprietário era Baptiste-Louis Garnier. Essa revista, impressa na França e referenciada constantemente pela Bibliographie passou a estampar na capa, a partir do número I do ano XV (ou a partir de janeiro de 1877), o nome de Germain-Eugène Belhatte como coeditor do projeto de Garnier. Tal parceria editorial (Garnier-Belhatte) vinha se fortalecendo também no suporte “livro”, nos anos 1870, visto que, para publicar o livro de poemas Falenas e os Contos fluminenses de Machado de Assis, em 1870, B.-L. Garnier já estabelecera coedições com Germain-Eugène.

O ano de 1869 foi importante para Machado de Assis. Cheio de compromissos na imprensa brasileira, essa mesma época correspondeu a uma abertura no espectro de sua produção literária em “livro”, afirmando-se como ficcionista. O periódico Bibliographie de la FranceJournal Général de l’Imprimerie et de la Librairie (1869, p. 614 e p. 736) confirma, no ano mencionado, a composição e impressão dos poemas de Falenas e dos Contos fluminenses, de Machado de Assis, em Paris, sendo Eugène Belhatte o editor responsável pela publicação em Paris, escolhendo para isso a oficina tipográfica de  Édouard Lainé.

Os sete textos escolhidos para os Contos fluminenses, a partir do Jornal das Famílias, ocupam 375 páginas porque o formato In-12 aponta para uma edição pequena, que se destinava a atingir públicos diversificados, composta com margem larga, o que garantiria uma leitura agradável. Esses aspectos materiais ilustram o que a composição e a publicação das edições de B.-L. Garnier em Paris mostram: ao longo dos anos 1860, nasciam e se configuravam, alguns dos autores até hoje mais representativos da ficção do Brasil, a partir dos planos editoriais da casa Garnier . Paralelamente à ficção de  Machado de Assis,  esse editor investia nos romances de outro importante escritor brasileiro,  José de Alencar, cuja obra também vinha sendo publicando na França desde 1862,  com auxílio de homens de letras brasileiros e de um suposto apoio do governo imperial brasileiro à época.

 

Literatura e contato entre culturas

O Brasil do século XIX tinha uma atividade livreira comercial dinâmica, em sintonia com outros mercados estrangeiros. A circulação transatlântica de textos e de livros permite compreender que uma série de acontecimentos que tendemos a perceber como “nacionais” resultou em parte do contato entre culturas.

 

Publicado em novembro de  2023

Legenda : Phalenas, por Machado de Assis. Rio de Janeiro, Garnier, 1869

Réduire l'article ^