Nísia Floresta e os primeiros feminismos no Brasil
Nísia Floresta inaugura uma fase em que a prática literária feminina representa o instrumento privilegiado das primeiras reivindicações em prol da educação e dos direitos das mulheres.
Direitos das mulheres, injustiça dos homens (1832) de Nísia Floresta inaugura uma fase em que a prática literária feminina representa o instrumento privilegiado das primeiras reivindicações em prol da educação e dos direitos das mulheres.
Precursora
No começo do século XIX, quando a maioria das mulheres brasileiras era analfabeta e confinada ao espaço doméstico, Dionísia Gonçalves Pinto, que adota o pseudônimo de Nísia Floresta, representa uma “exceção escandalosa” (palavras de Gilberto Freyre).
Com vinte anos de idade, a autora começa a colaborar com a imprensa nacional (artigos, panfletos e ensaios) e milita pela educação feminina assinando artigos e ensaios e fundando no Rio de Janeiro o Colégio Augusto. O anúncio da abertura da instituição, no Jornal do Commercio em 1838, mostra um projeto didático inovador, com matérias tradicionalmente reservadas aos homens.
Entre o velho e o novo mundo
Em 1849, já viúva, Nísia Floresta muda-se para a Europa, onde reside por cerca de trinta anos, em três períodos distintos. Paris torna-se a base de suas peregrinações e a França sua pátria de eleição até a morte em Rouen, em 1885. Francófona e francófila, a autora integra círculos intelectuais, representando uma figura central da comunidade brasileira na França e uma das raras mulheres positivistas. O Opúscolo humanitário (1853) revela a influência do pensamento do filósofo Auguste Comte que nela antevê um eficaz veículo de propaganda “feminina e meridional” de sua doutrina.
A experiência de viajante alimenta quatro obras: Itinéraire d’un voyage en Allemagne (1857), Trois ans en Italie, suivis d'un voyage en Grèce, par une Brésilienne (1864), Le Brésil (1871) e Fragments d’un ouvrage inédit, notes biographiques (1878). Publicados em Paris, em francês, esses títulos ganham uma tradução portuguesa no momento do resgate da autora (anos noventa do século XX). Nessas obras, Nísia Floresta reflete sobre a sociedade e os costumes europeus numa perspectiva comparativa. Em “páginas espontâneas” que vão “do velho ao novo mundo”, para citar Itinéraire d’un voyage en Allemagne, Nísia explicita sua filiação intelectual, dialogando com Byron, Goethe e Madame de Staël e citando, entre outros, Descartes, Rousseau, Voltaire, Victor Hugo, a Condessa de Genlis e George Sand. Sua posição excepcional de viajante produz uma reflexão articulada sobre os elementos que constroem o imaginário do Brasil na Europa (registros irónicos sobre o conceito europeu de civilização, crítica dos preconceitos.), reflexões condensadas no tratado O Brasil.
Direito das mulheres, Injustiça dos homens
Não obstante essa trajetória, Nísia Floresta é associada principalmente ao seu livro Direito das mulheres, Injustiça dos homens (1832), um terreno ideal de observação da história da militância feminina no país e da circulação do pensamento europeu.
A autora apresenta a obra como uma tradução livre do ensaio de “Mistriss Godwin”, nome de casada de Mary Woolstonecraft. No entanto Direito das mulheres, Injustiça dos homens encaixa-se dificilmente na categoria de tradução livre, e termos como “tradução cultural” e “antropofagia libertária”, conforme a expressão de Constância Lima Duarte, têm sido utilizados para explicar uma trama entrelaçada de uma pluralidade de textos: la Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791) de Olympe de Gouges, Woman Not Inferior to Man (1739) de Sophie e, principalmente, De l'égalité des deux sexes (1673) de François Poullain de la Barre. A complexidade das influências revela a capacidade da autora de adaptar elementos ideológicos de matriz ocidental à realidade nacional, num diálogo com os pensadores europeus.
Escrever para existir
Direito das mulheres, Injustiça dos homens tem uma repercussão importante e reedições são lançadas em Porto Alegre e no Rio de Janeiro durante os anos trinta. Em meados do século XIX, a “questão feminina” torna-se um tema de atualidade no debate público e nos salões burgueses.
Nessa fase, a militância está profundamente ligada à aparição da literatura de autoria feminina, e as numerosas revistas dirigidas por mulheres que surgem naquele momento testemunham essa dinâmica. Em 1852, Joana Paula Manso de Noronha funda o Jornal das Senhoras, que reúne artigos anônimos sobre diferentes temáticas. O editorial do primeiro número declara o intento de promover o “melhoramento social e emancipação moral” das mulheres, tendo como exemplo o progresso feminino na Europa e nos Estados Unidos. Uma outra publicação desse período é Bello Sexo: Júlia Albuquerque Sandy Aguiar exorta as mulheres brasileiras a escreverem e a assinarem seus artigos.
A partir dos anos 1870, os periódicos tornam-se o berço de uma consciência feminista que elabora reivindicações mais concretas como o direito ao voto, ao trabalho e à propriedade, denunciando a dependência econômica como um fator decisivo da subordinação feminina.
Entre 1873 e 1896, circula O Sexo Feminino, “semanário dedicado aos interesses da mulher” fundado por Francisca Senhorinha da Mota Diniz. O Echo das Damas e O Domingo representam um outro exemplo.
No final do século XIX, publicações funcionam como caixa de ressonância de movimentos femininos e feministas mais organizados: A Família, dirigida por Josefina Alvares de Azevedo, convida as mulheres a formarem grupos, a fundarem jornais, engajando-se na luta. Criada por Presciliana Duarte de Almeida, a revista literária A Mensageira aborda o trabalho e a educação universitária.
Avançando no caminho traçado por Nísia Floresta, a imprensa feminina preanuncia a mobilização que levará as mulheres à conquista do direito de votar e serem eleitas.
Publicado em julho de 2020
Légende de l'illustration : Trois ans en Italie, suivis d'un voyage en Grèce, par une Brésilienne. N. Floresta. 1864-1871