Rumo aos trópicos…e para além : Marcel Proust no Brasil (1913-1950)

Entre 1947 e 1950, em um momento em que Proust está esquecido na França, ele ganha um interesse inédito no Brasil. O fenômeno, ligado à emergência de uma tradução de La Recherche du temps perdu em 1948, está longe de se limitar unicamente a esse empreendimento editorial.

 

Um ano antes da publicação do primeiro volume de Em busca do tempo perdido no Brasil, é lançada no Rio de Janeiro a Revista Branca, referência à Revue Blanche, na qual Proust publicava no final do século XIX. Em 1950, uma antologia da crítica brasileira é dedicada ao escritor. Em 1949, o tema da província em Proust torna-se objeto de um número da revista Nordeste de Recife, cujo editorial responde a Albert Camus que, em sua passagem pelo Brasil, se espantara com esse sucesso. Para entender essa recepção, que vai na contramão do mundo literário francês, é preciso observar a difusão, a recepção e a tradução da Recherche no Brasil entre 1913 e 1950.

O Goncourt como porta de entrada e recepções diferenciadas

O nome de Proust começa a ser conhecido no Brasil já no final de 1919, graças ao prêmio Goncourt que recompensa À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Antes dessa data, a descoberta do autor restringe-se frequentemente às elites de passagem na Paris do ante guerra, como o crítico Alceu Amoroso Lima (sob pseudônimo). As primeiras leituras críticas brasileiras só surgem, contudo, entre 1923 e 1926. Uma conferência de Paul Hazard, em 1926, dá um verdadeiro impulso à recepção literária carioca do escritor. Assim, assistimos, em 1927 e 1928, uma comunicação acerca da música em Proust e uma intervenção mais geral de Alceu Amoroso Lima sobre o autor. No Rio, essa leitura se situa no prolongamento da atualidade e da crítica literária francesa de Proust.

No Nordeste, a Recherche chegara de maneira rocambolesca pelo viés do poeta Jorge de Lima. Observa-se já em 1925 intertextualidades proustianas na produção do poeta. Se a recepção carioca focava-se nos espaços parisienses da Recherche, o Nordeste transpõe para o Brasil o espaço rural de Combray e o beijo da noite. Em 1929, quando o poeta escreve o ensaio Proust, ele nota que “aquilo que há de mais Proust em Proust” são o vilarejo e sua igreja.

Fora desses espaços (Rio, capital; Nordeste regional), a recepção é ínfima. Em São Paulo, por exemplo, os ecos são modestos: se a revista Klaxon fala, em 1923, da morte do autor « extraordinário » da Recherche, observa-se que ao longo de todo o ano de 1922 o autor só é evocado quando aparece, ocasionalmente, nas recensões críticas de alguns números da Nouvelle Revue Française. Em 1933, contudo, no prefácio de Casa-grande e senzala, o sociólogo Gilberto Freyre explicita: “O estudo da história íntima de um povo tem alguma coisa da introspecção proustiana”. Um autor que fora recebido como objeto de importação estrangeira, diversamente assimilado, é então plenamente apropriado no Brasil.

Um relativo desaparecimento

Os anos 1933-1940 marcam um declínio, paralelamente ao que acontece na Europa. Continua-se, porém a observar muitas intertextualidades, como em Jorge de Lima que, em 1939, em A mulher obscura, transpõe inúmeros fragmentos da Recherche no Brasil (particularmente uma passagem que concentra a evocação dos despertares e a da madeleine no Rio dos anos 1930). A crítica Lúcia Miguel Pereira faz, em 1936, uma aproximação entre o autor da Recherche e o escritor Machado de Assis. Finalmente, em 1937, a leitura da Recherche se torna um ponto do programa no concurso de admissão de uma faculdade de direito brasileira. Esses elementos mostram que Proust se tornou um clássico no Brasil.

No início dos anos 1940, uma nova geração de intelectuais descobre o autor. A adesão literária é inegável. A equipe da revista Clima, da Universidade de São Paulo, constata, entretanto, a inatualidade da obra. Assim, no primeiro número, apesar de manifestar sua admiração por Proust, o sociólogo Ruy Coelho sugere que ele teria dissolvido « todos os conteúdos reais » de seu tempo. Uma verdadeira redescoberta, permeada por uma certa nostalgia do mundo de outrora evocado pelo escritor, e marcada pelas dificuldades de aquisição dos volumes, é perceptível durante a guerra. Ela se traduz por conferências no Rio de Janeiro, e um projeto de tradução, anunciado em 1946 e publicado em 1948.

Redescobertas plurais

A reativação da recepção de Proust após a Segunda guerra mundial adota, assim como na primeira, distintas modalidades, com a diferença que, nesse meio tempo, Proust se tornou “universal”. Assim assinala-se, no Rio de Janeiro, a continuidade dessa recepção; no Recife, faz-se referência à província em Proust, ao espaço de Combray contra o de Paris, como o do Nordeste contra o do Rio, e no editorial da revista Nordeste dedicado a Proust o autor é universalizado, justificando o interesse dos leitores brasileiros que tanto espantava Albert Camus; e se Proust é pouco evocado em São Paulo, a tradução de Du côté de chez Swann é ali o segundo livro mais vendido na semana de sua publicação, em um momento em que Proust parece inexistente na França (Gaëtan Picon não o evoca em 1950, em seu panorama da nova literatura francesa).

Ao longo do tempo construiu-se uma recepção brasileira de Proust, que permite mesmo aos pensadores do país de nele se refletir como em um espelho, conseguindo verdadeiramente aclimatá-lo aos trópicos. O estatuto de clássico conquistado pelo escritor supera amplamente essas recepções regionalizadas e leva a uma apropriação literária que vai para além dos trópicos.

Publicado em Junho de 2023

 

Legenda Revista Clima, mai 1941

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