Rui Barbosa e o caso Dreyfus

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Em 6 de setembro de 1893, um grupo de oficiais da Marinha brasileira acusa Floriano Peixoto de manter-se ilegalmente na presidência e exige a imediata convocação dos eleitores para a escolha dos governantes, episódio que ficou conhecido como a Revolta da Armada. O movimento seria duramente reprimido...

 

 

Um liberal no exílio

Identificado como um dos elementos mais importantes da oposição, Rui Barbosa asila-se na Legação do Chile e consegue sair do Brasil. No dia 27 de julho de1894, chega à Inglaterra.

Na ocasião, tinha 45 anos e nas duas décadas anteriores havia sido: uma vez deputado provincial, duas vezes deputado geral, líder da bancada governista e conselheiro do Império. Fora o primeiro Ministro da Fazenda da República e tornara-se senador no novo regime, jornalista atuante, polemista popular, sobretudo nos últimos anos na Capital do país e certamente o mais brilhante representante brasileiro dos valores liberais que tomaram forma coerente na segunda metade do século XIX.

Anglófilo, admirador de pensadores ingleses e das instituições políticas da Inglaterra, ao chegar ali, escrevera: Eis-me, afinal, nesta terra entre todas grande e singular onde me sinto tão soberbo de ser homem.

Toma conhecimento do Caso Dreyfus

O Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, solicita-lhe artigos. Logo um tema, agitado pela imprensa londrina, salta-lhe aos olhos: o julgamento de Dreyfus:

Fui seduzido e fascinado pelo assunto, que inopinadamente se me ofereceu, e que me vibrou profundamente no coração a corda da justiça, ainda não morta, apesar da dura lição que agora mesmo me está custando.

Pressentia que podia fazer valer alguma analogia entre os desmandos da justiça militar francesa e o autoritarismo da república brasileira militarizada pelo novo presidente. O polemista é espicaçado pelo caso, mas é também o advogado que emerge. E, na verdade, o seu domínio da doutrinas jurídicas quase sempre esteve a serviço da ação política.

O primeiro artigo enviado, “O processo do Capitão Dreyfus”, foi publicado em 3 de fevereiro de 1895. Havia sido escrito em 6 de janeiro 1895, um sai após a degradação pública do capitão Dreyfus:

Não me cabe descrever a cerimônia atroz da degradação militar, prelúdio feroz da expiação sobre-humana que se abriu ontem para o malfadado. Essa cruel solenidade horrorizou a Europa.

A imprensa inglesa dá grande repercussão ao caso, em particular o Times cujo editorial – citado por Rui – afirmava que na Inglaterra seria impossível admitir a uma agregação de oficiais, fossem quais fossem, o direito de julgar a portas cerradas uma querela susceptível de resolver-se em penas infamantes.

E o mote das diferenças entre as práticas institucionais francesas e inglesas serve de abertura para o texto de Rui Barbosa:

Eis aí um fato, de expressão quase trágica, sobre o qual se acaba de exercer distintamente a consciência de dois povos que a Mancha separa: um, na maneira de resolvê-lo; o outro, na de considerá-lo.

“O processo do Capitão Dreyfus” tem a argumentação de uma defesa jurídica. Atento à letra da lei, Rui sabe que o sigilo utilizado no julgamento seria admissível segundo a norma vigente nos tribunais militares franceses, uma vez que ela reservava

aos juízes o arbítrio de estabelecer o sigilo, nos casos em que a publicidade lhes pareça envolver risco para a moral ou para a ordem. Assim se resolveu na espécie do Capitão Dreyfus.

No entanto, e ele cita longamente o Times:

“não podemos deixar de refletir que, quanto mais odioso e impopular for um crime, tanto mais de preceito é que a sua verificação e o seu castigo se rodeiem de todas as salvaguardas da justiça pública. E delas a mais indispensável é a publicidade.

Do que se praticou no processo Dreyfus, a parte censurável não está em se encobrir ao público o teor dos papéis, que se averbam de furtados, senão sim em condenar o réu, sem a comprovação em tribunal aberto e mediante depoimentos solenes, de que o acusado foi realmente o autor do furto [...] Além de que é para temer que a propaganda anti-semítica, acesa em França, avivasse a hostilidade contra Dreyfus, membro de uma família hebréia bem conhecida, e a favor de quem um homônimo, o Grande Rabino de França, foi nomeado testemunha.”

Liberal e anglófilo

E Rui Barbosa acrescenta aos comentários do jornal:

Este hábito de colocar os direitos permanentes da justiça em altura inacessível às conveniências do governo, às crises da política, ao clamor das tormentas populares é a virtude cardeal da Inglaterra. Todas as opiniões e todos os partidos, aqui, estão unificados no sentimento inerradicável desta necessidade.

Essa unanimidade, perpetuada através de todas as situações, nos dias prósperos e nos dias calamitosos, infundiu ao indivíduo uma confiança absoluta na ordem social e apoiou solidamente nessa confiança o interesse comum ; de modo que o povo mais individualista da terra é, ao mesmo tempo, aquele onde mais desenvolvida se acha a consciência ativa da solidariedade humana e da coesão social.

Refere-se depois aos países como o Brasil do qual se exilara: outros povos muito menos confiantes na justiça, [...] quando os ventos maus lhes toldam o horizonte, dão-se pressa em abandonar as garantias do direito [...] para ir pedir ao empirismo dos políticos sem convicção ou à estrela dos déspotas sem escrúpulos a panacéia miraculosa ou o signo salvador. E então os mais desacreditados instrumentos da arte de oprimir, os golpes de autoridade, os tribunais de exceção, as justiças secretas, se preconizam em novidades salutares [...] ora em nome das leis sofismadas [...] sob color do bem público, ora em nome do bem público, declaradamente sobreposto às leis.

E conclui:

Essas nações, fadadas ao cativeiro alternativo da anarquia e da ditadura, cuidam fugir da desordem, evocando o arbítrio, e não fazem mais do que oscilar periodicamente entre a agitação demagógica e a inércia servil. É para elas que se imortalizou a frase de Sieyès: “Não sabem ser justos e querem ser livres”.

 

Publicado em Dezembro de 2023

 

Legenda : Dreyfus (Alfred), Buste, 3/4 à dr, Gerschel, 1885

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