Caramuru herói transatlântico
Entre história e literatura, Diogo Álvares, aliás Caramuru, teve um curioso destino transatlântico. Não tendo provavelmente jamais pisado o solo da França quando vivo, para lá foi transportado pelo mito, antes de se tornar objeto de intensos debates entre franceses e brasileiros.
A ENTRADA NO MITO
Não se sabe muito bem como chegou à costa da Bahia, provavelmente por volta de 1510, este português ou galego. Sua presença, contudo, é comprovada através de vários documentos, sobretudo algumas cartas, do primeiro donatário da região, Francisco Pereira Coutinho (20 de dezembro de 1536) e de seus vizinhos Pero do Campo Tourinho (28 de julho de 1546) e Duarte Coelho (28 de dezembro de 1546). A partir da nominação de Tomé de Sousa como governador geral pelo rei D. João III, as menções a Diogo Álvares (e à sua alcunha não ainda estabelecida) vão se intensificar. O soberano manda lhe escrever em 15 de novembro de 1548; e desde abril de 1549, os missionários jesuítas, cuja Companhia vai receber uma parte de seus bens quando da sua morte, por volta de 1557, o citam várias vezes como um precioso mediador no contato com os Índios.
Além das suas qualidades de intérprete e de pacificador, são atribuídas a ele, ainda em vida, duas características : a de patriarca na origem de uma vasta descendência, a semelhança de um João Ramalho para São Vicente, e que alguns poemas de Gregório de Matos vão propagar satiricamente no século XVII; e a alcunha tupi, cuja interpretação oscilará entre « boca de fogo », numa referência a dois supostos tiros de arcabuz para o alto, e « animal (monstruoso) vindo do mar » (Fernão Cardim e Claude d’Abbeville identificam o caramuru com a moréia), possível alusão a um naufrágio. A imagem do dragão faz a síntese disso. A alcunha seria então um sinal de integração no seio do mundo indígena, investindo o homem de autoridade e de formidável superioridade. A maior parte destes elementos se encontram no « tratado » de Gabriel Soares de Sousa (1587)
Desde o século XVII, sua história cresce e agrega novos encaminhamentos. Em 1627, Frei Vicente do Salvador oficializa uma esposa índia que ele diz ter conhecido e que teria recebido o prenome cristão de Luísa, quando da viagem à França, ao fim da qual ela teria desposado Diogo. O franciscano integra também um episódio chave: a construção de um local de culto por iniciativa da índia, justificada nas versões posteriores por um sonho onde a Virgem teria aparecido para ela. Progressivamente Simão de Vasconcelos (1663), Brito Freyre (1675) e Rocha Pitta (1730), notadamente, valorizam e destorcem o relato : a esposa se chama então Paraguaçu e recebe na França, de sua madrinha Catherine de Médicis, o nome de Catarina Álvares, simétrica do «°batismo índio°» de seu marido; em seguida o casal tem sua união bendita por Henri II e pela rainha. Acréscimos e correções vêm reforçar a coerência moral e política da intriga em função do sentido dado à História. Assim o relato de Jaboatão (1761) diverge sobretudo pela antecipação da data da viagem à corte francesa: para fazer de Diogo Álvares o primeiro português da Bahia, o « Adão baiano » como mais tarde vai chamá-lo Serafim Leite, e para explicar o prenome Catarina por meio da esposa de D. João III, Catarina da Áustria, e não mais de Médicis. Ele retoma assim debates sobre as origens do Brasil e o papel de Caramuru já levantados em 1759 por duas dissertações de José de Oliveira Beça e um esboço de poema épico de Domingos da Silva Teles, autores ligados à Academia Brasílica dos Renascidos.
O mito sofre uma reviravolta em 1781, quando o agostinho José de Santa Rita Durão (1722-1784) consagra-lhe uma obra inteira : Caramuru. Poema épico do descobrimento da Bahia. Com a ambição de escrever o equivalente brasileiro d’Os Lusíadas, que tratava da vertente oriental da expansão lusitana, Santa Rita Durão se inspira não só em Camões mas nos modelos canônicos da epopéia. Também dialoga, de forma subterrânea, com O Uraguai de Basílio da Gama (1769), este de alguma maneira se redimindo de ter estado do lado dos jesuítas no momento da expulsão da Companhia, aquele expiando seus remorsos de ter, em 1759, fornecido uma caução teológica ao golpe de força do futuro Marquês do Pombal.
Originário, como Basílio da Gama, de Minas Gerais, para onde jamais voltou após sua partida do Brasil em 1731, ao contrário de seu contemporâneo, Santa Rita Durão se dedica a sua epopéia em torno de 1778, após a morte do rei D. José I e o fim de seu exílio romano. Mas diferentemente de O Uraguai, que denuncia a instrumentalização dos índios pelos religiosos quando da recente reconquista laica das «°Missões°», seu Caramuru louva as virtudes civilizatórias da evangelização e esboça, graças aos recursos retóricos da evocação retrospectiva e do sonho premonitório, uma amplo afresco do Brasil, da época pré-cabralina às promessas de um notável futuro. Ainda que enaltecendo a colônia, como no canto VII, onde o herói apresenta ao rei da França um quadro encantador da natureza brasileira, o agostinho não é movido de nenhuma intenção separatista atribuída à iminente «°Inconfidênca°» e faz claramente de Diogo Álvares o instrumento da anexação do Brasil à coroa portuguesa. Será lido de maneira bastante diferente no século seguinte.
Avatares do mito, história e histórias
Passado um pouco despercebido quando de sua aparição em 1781, o poema épico de Santa Rita Durão vai, quatro décadas mais tarde, chamar a atenção de Ferdinand Denis: « […] apesar de suas imperfeições, ele é nacional, e […] aponta muito bem a direção para a qual deve se dirigir a poesia americana . » O francês, aliás, regressará de maneira recorrente às aventuras de « Caramourou », que lhe inspiram algumas páginas das Scènes de la nature sous les tropiques… (1824), e ocupam a maior parte das sínteses que ele dedica ao Brasil, até Une Fête Brésilienne, célébrée à Rouen en 1550… (1850).
F. Denis transmitiu este interesse a Eugène Garay de Monglave, que adaptou a epopéia em uma versão romanesca francesa : Caramuru ou la découverte de Bahia (1829); assim como a Daniel Gavet e Philippe Boucher, que nele se inspiraram para a composição de Jakaré-Ouassou ou Les Tupinambas. Chronique brésilienne (1830) ; e até a Julie Delafaye-Bréhier, que encaixou a história em seu relato infanto-juvenil : Les Portugais d’Amérique (1847).
Estas leituras e reescrituras imprimem no entanto uma tripla torção ao mito : outrora herói da ligação entre o Brasil e a monarquia portuguesa, Caramuru torna-se uma espécie de figura protonacional do Brasil recentemente emancipado, prefigurando a disjunção entre América e Europa à imagem do Meias-de-Couro de Fenimore Cooper, cujo O último dos moicanos conhece um sucesso excepcional a partir de sua publicação francesa em 1826. Paralelamente, enquanto Diogo Álvares era, até o século XVIII, o mediador da evangelização, a partir de então ele passa a ser levado pela onda de indianismo que, na França, faz eco à nostalgia rousseaunianista das origens naturais do homem e à perda dos valores aristocráticos, sacrificados no altar da Revolução e ressucitados em um índio hierático, heróico e cavalheiresco — oferecendo ao mesmo tempo uma forma de consolação para a extinção das colônias da América. É também por isso que os franceses puderam ver em Caramuru uma possibilidade de fazerem o papel de pais adotivos após a Independência de 1822.
A releitura brasileira seguirá em parte a via traçada por Ferdinand Denis, no entanto com tropismos próprios rejeitando, por exemplo, o afrancesamento do personagem. Na verdade, o nome de « Caramuru » aparece no Brasil primeiramente no campo político, isto é, para designar o partido restaurador ou « português » (1831-1834), e um jornal apoiando a volta de Dom Pedro I após a abdicação e seu retorno a Portugal. Mais tarde o personagem, capaz de conciliar as origens coloniais do jovem país e a afirmação de um diferencial « nacional », vai se tornar um ideal possível dos metarrelatos de fundação imperiais. Também é importante para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estabelecer as bases históricas de sua existência, desmentindo a fantasista viagem à França, tarefa à qual se aplica Francisco Adolpho Varnhagen em « O Caramurú perante a historia ». Um pouco mais tarde, o historiador redige um “romance” (poema versificado, à maneira dos romanceiros) visando o coração de seus compatriotas a fim de manter, apesar da positividade da ciência histórica, a chama popular do mito: « O matrimônio de um Bisavô ou O Caramuru ».
Embora as alusões, reescrituras e promoções abundem sob o reino de Dom Pedro II (Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar…), o poema de Santa Rita Durão, sendo uma das primeiras obras nacionais a se inscrever no corpus da escola primária em 1878 (donde as reedições quase oficiais da epopéia), o mito jamais consegue se impor verdadeiramente, a não ser em sua vertente índia, e, portanto, feminina. Na realidade, Paraguaçu e sua rival Moema terminam por roubar o protagonismo de Diogo Álvares, como atesta o célebre quadro de Victor Meirelles, dedicado ao afogamento de Moema (1866), ou a curta ópera de O’Kelly e Villeneuve, reresentada no palco do Théâtre Lyrique de Paris em 2 de agosto de 1865 : Paraguassu.
O texto de 1781 sofre, aliás, de uma clivagem política que continua a associá-lo aos grupos conservadores enquanto que O Uraguai, de Basílio da Gama agrada com mais frequência aos progressistas. Assim, a reapropriação pelos brasileiros de sua história literária, tanto no século XIX quanto no século XX, passa frequentemente por critérios ao mesmo tempo ideológicos e estéticos, e pela rejeição das interferências estrangeiras. Mas em matéria de mito, nada é fixo, como comprovam a versão abolicionista de Domingos José Nogueira Jaguaribe, Os herdeiros de Caramurú (1880), as assimilações republicanas de Afonso Celso, Olavo Bilac, Bonfim, ou ainda a reinvenção portuguesa abracadabrante, na ocasião do quarto centenário da « descoberta » da colônia (Arthur Lobo d’Avila, Os Caramurus — Romance Histórico da Descoberta e Independência do Brasil, Lisboa, 1900).
Mais recentemenete a presença de Caramuru em Cendrars (1952, provavelmente descoberto via Paulo Prado) ou a macunaimização telenovelesca do herói por Guel Arraes e Jorge Furtado (2001) revelam a grande plasticidade de uma historia permeável à mensagem evangelizadora, colonialista, nacionalista, aos combates políticos de toda ordem, à moda primitivista e até aos argumentos publicitários : tendo servido, há não muito tempo, de tema para canções de carnaval ou de marca a um armeiro brasileiro, o nome tupi de Diogo Álvares designa ainda hoje lojas de fogos de artifício.
Publicado em 2009
Legenda : Caramurú e sua consorte Paraguaçú