Brasil holandês
As delícias da Holanda - Contextos - Pierre Moreau e Roulox Baro - A carta - Correspondência(s) - Arquivos e bibliotecas - Traduções – recepção - Imagens - Objetos e formas - Coleções de viagens e escrita da história
As delícias da Holanda
As relações entre a França e as Províncias Unidas oscilaram ao sabor das alianças dentro de um contexto europeu e mundial de rivalidades. A união contra um inimigo comum – o império dos Habsburgo e o gigante castelhano – evolui para uma cooperação ativa, apesar das divergências religiosas, antes de mudar radicalmente sob o reino de Louis XIV.
Les Délices de la Hollande, de Parival, publicado em 1651, gaba a existência de uma república federativa, protestante, que detinha então um império de uma insolente prosperidade através dos mares. Louva a imagem intelectual de uma terra beneficiada pela mistura dos povos, pela acolhimento aos exilados, pelo espírito de tolerância. Este trabalho literário, científico, técnico e editorial fascina uma República das Letras. A obra será reeditada várias vezes.
Contextos
Salvador da Bahia torna-se um alvo de escolha em razão de sua situação na circulação transatlântica e do comércio do açúcar. A frota holandesa se apresenta em maio de 1624 diante da cidade e a conquista facilmente. A resistência das tropas luso-brasileiras se organiza no interior, enquanto a coroa castelhana prepara a resposta, apoiada pelas frotas de Portugal. Muitos textos circulam rapidamente dando mostra das rivalidades: entre espanhóis, portugueses, luso-brasileiros, e entre “castelhanos” e holandeses. O cronista real da espanha, Valencia y Gúsman, e o comandante da frota portuguesa, Manuel de Meneses, expõem seus pontos de vista. Jesuítas detalham a empreitada: o relato de Bartolomeu Guerreiro e, sobretudo, a carta anual confiada à pluma do então jovem António Vieira.
As informações sobre a tomada e a reconquista chamam a atenção pela rapidez e pelo volume. As prensas se ativam, como comprova o grande número de publicações. Fora do domínio do impresso e das notícias de tom planfetário, cartas, gazetas, opiniões, petições de serviços pululam nos arquivos. Estes cruzamentos de informações são disseminados: na Holanda nos bastidores da Companhia das Índias; nos circuitos administrativos do império português e espanhol, nas correspondências de embaixadores; nas redes de comerciantes judeus e cristãos novos estabelecidos em Amsterdã, Rouen, no outro lado do Atlântico, na Europa.
O Portugal enfraquecido após a Restauração (1640) luta pelo seu reconhecimento diplomático e busca o apoio da França contra o vizinho espanhol. A questão da Holanda penetra as tratativas. A França é muitas vezes apresentada como uma aliada ou “amiga” por necessidade e desconfia-se de seu interesse pelas conquistas do além-mar, talvez fundado em um novo desejo de colonização.
Pierre Moreau e Roulox Baro
Pierre Moreau, protestante refugiado na Holanda, permaneceu dois anos no Brasil num momento em que a guerra estava no auge. Em 1651, ele vai publicar seu testemunho e um relato, traduzido e anotado, de um agente enviado à terra dos Tapuias. É o relatório do intérprete Roulox Baro, encontrado, diz ele, nos arquivos da Companhia. Estas obras, documentadas e curiosas, ilustram a história imediata sem deixarem de oferecer uma visão pessimista desta mesma história. E revelam também as relações entre protestantismo francês e atividades holandesas.
A carta
Lancelot Voisin de la Popelinière se lamentava da falta de documentação para redigir uma obra relatando a história e, depois dele, muitos humanistas criticam práticas do segredo que são contrárias à comunicação do conhecimento como um bem partilhado da humanidade.
A ligação entre impresso e manuscrito é complexa. Os historiadores demonstraram que o manuscrito é uma prática de governo à distância levada a cabo pelas autoridades (estados, instituições religiosas, companhias comerciais). Estas escritas do cotidiano com suas informações sobre as vias marítimas, os povos, as regiões, os homens, não escapam à publicação: transmissão das notícias via correspondência, cópias numerosas, compilações, correções, acréscimos.
Por outro lado, o escrito e o impresso tornam-se peças essenciais para sedimentar uma descoberta e reivindicar direitos em um contexto de rivalidades entre estados, entre clãs e entre homens. Disso dão prova as peças breves divulgadas através da imprensa, os panfletos holandeses, castelhanos, portugueses, as gazetas. Assim como as obras históricas publicadas após os acontecimentos, e os compêndios científicos e, ainda, os escritos comanditados pelos embaixadores e negociantes com suas oficinas de tradutores.
Enfim, o manuscrito é também uma peça que se insere em operações de prestígio. Nos meios portugueses e luso-brasileiros, a preferência da pluma para redigir genealogias, cartas e epístolas, peças poéticas ou narrativas é a marca de uma nobreza que sofre a concorrência da ascenção dos letrados na rede administrativa. A escrita é afirmação de si. Estas práticas de prestígio penetram outros universos e é também por este viés que luso-brasileiros, ameríndios, reivindicam lugares, títulos e reconhecimento na sociedade colonial.
Correspondência(s)
As correspondências dos agentes portugueses na Inglaterra, Holanda, Suécia, França ou Roma são ricas em informações ; assim como as trocas epistolares dos religiosos e dos intelectuais, raramente reunidas e publicadas. Porém, quantos cruzamentos entre homens de todas as línguas e de todas as nações, quantos detalhes sobre a circulação de pessoas, de ideias e dos livros! As mais conhecidas estão ainda por serem estudadas em profundidade em suas interações geográficas, históricas, sociais, intelectuais, materiais e estéticas. Assim, o chantre Severim de Faria – no centro de um círculo em Évora que é sua “biblioteca de viagens” – recebe notícias do Brasil, de Luanda, do Oriente, da Europa. Ele compila textos que inspiram suas obras de “jornalista” e de historiador; monta um museu-biblioteca, influencia obras (entre elas, a história do Brasil escrita pelo Frei Vicente do Salvador, ou o compêndio naturalista de seu irmão, missionário na Amazônia). Há ainda as correspondências dos embaixadores na França e na Inglaterra (Soares de Abreu, o Marquês de Nisa, Duarte de Macedo ; António de Sousa de Macedo, Francisco Manuel de Mello, Brochado etc.), e a, magnífica, de um Vieira, do bibliotecário Vicente Nogueira, etc. E no âmago destas correspondências, a imagem da França que se torna central para a comunicação, para a busca, a montagem e a recepção, sob controle ou não, da informação, e para a publicação e a divulgação de uma obra.
Arquivos e bibliotecas
Quanto às suas constituição e organização, as bibliotecas são objeto de ensaios (Naudé, Vicente Nogueira). A biblioteca privada é reconhecida como instrumento de poder, um objeto de distinção social. Neste ponto, mais uma vez, as correspondências são eloquentes e, além das cartas, os acervos franceses materializam as pesquisas ou doações de manuscritos e de obras lançadas em Portugal por agentes (Verjus, Legrand, Bignon, etc.).
O acervo da Bibliothèque Nationale de France tem coleções importantes que esclarecem a questão brasileira : o acervo Mazarin, a coleção Moreau, a coleção Lallemant de Betz, a coleção dita « Cinq cents de Colbert », a coleção Clairambault. Aí encontram-se descrições, documentos sobre os direitos e pretensões, acervos epistolares, mapas e selos, relatórios de viagens… É, por exemplo, no acervo Clairambault que se encontra uma descrição de Maurice de Heriarte sobre a Amazônia publicada em português apenas no século XIX. Outros acervos de bibliotecas na França e alhures indicam uma mesma circulação de cópias, mapas, livros…
Traduções – recepção
Os escritos mudam de sentido quando ultrapassam as fronteiras e as barreiras da língua. Os estudos sobre a tradução na França na idade clássica – as “belas infiéis” – tiveram como lema o pensamento da língua como gênio da nação. Também a personalidade e o papel dos passadores, dos tradutores, seu lugar no campo político e literário são temas que restam a ser estudados com mais profundidade. Sem esquecer a escolha das obras, os títulos, prefácios e dedicatórias; as estratégias dos livreiros-editores. Sem esquecer tampouco os modelos literários seguidos ou criados. Porque defasagem e deslocamento há sempre entre a produção e a recepção de um escrito e das leituras que dele são feitas.
Constata-se isso com a tradução do tratado de Fernão Cardim em inglês, em latim e em francês ; detecta-se igualmente nas peças liminares que enquadram a tradução do jesuíta Vieira. A descrição da Amazônia do Conde de Pagan (1655), general conhecido por suas teorias inovadoras, passa por ter sido influenciada pelo relato de Acuña (1641), mas ela é também inspirada por fontes recolhidas em Portugal. Dedicando a obra a Mazarin, o autor sugere iniciativas comerciais para estabelecer relações com os indígenas e incita o rei a tomar posse da região amazônica. A tradução inglesa, de 1661, é pródiga no mesmo conselho ao rei da Inglaterra. A magia amazônica perpassa a adaptação de Acuña produzida pelo romancista Gomberville em 1681 : as considerações preliminares recenseiam a presença dos franceses na história das descobertas. E mesmo se o autor leva a missão de Acuña para o lado do romanesco e da tragédia, o relato reverencia a vocação francesa para descobrir e conquistar. A edição reúne, aliás, dois outros escritos sobre Caiena e a Guiana.
Imagens
A iconografia holandesa sobre o Brasil, ilustrando obras impressas, e inseridas em outras obras artísticas (pinturas, gravuras, tapeçarias, peças decorativas) foi muito estudada pela crítica. É, depois da iconografia da França Antártica e a da França Equinocial, um esplêndido conjunto que dá uma imagem mais realista das paisagens e dos homens.
As representações da fauna e da flora são outra vertente da missão científica iniciada por Maurício de Nassau no Recife. As obras então redigidas no Brasil por missionários, viajantes ou luso-brasileiros, não beneficiaram da mesma circulação, como por exemplo o manuscrito de Cristóvão Severim, Histórias dos Animais e Arvores do Maranhão, concebido para ser publicado por volta de 1631 mas que permaneceu inédito até 1967. Trata-se de uma obra pioneira sobre a história natural, escrita vinte anos antes de Historiae Rerum Naturalium Brasiliae, em co-autoria com o geógrafo, médico e astrônomo Marcgrav. Os desenhos do jesuíta não podem rivalizar com o esplendor plástico de uma obra que se beneficiou da arte do pintor Albert Eckout, mas o compêndio português é mais aprofundado no levantamento dos peixes e dos pássaros. Este interesse pelas maravilhas da natureza é antigo e ele se torna mais importante com a especialização das viagens, a pesquisa das plantas para fins medicinais e comerciais, o interesse científico diante da diversidade do mundo animal e mineral. Interesse essencial no século XVIII, à época das grandes expedições.
Imagens mais clássicas continuam, entretanto, sendo veiculadas nas alegorias do Brasil e do Novo Mundo, em suntuosas obras testemunhando jogos de salão, como o Carroussel du Louvre, e até em relatos de viagens (Remarques du Grand Voyageur, 1703).
Objetos e formas
As cartas são frequentemente acompanhadas : um papagaio ou um macaco, plumas, uma planta, um utensílio, uma arma. Os gabinetes de curiosidades da Renascença são conhecidos e Thevet possuía já a sua coleção. São objetos simbólicos que falam da viagem e que, sob a forma de doações ou de convites em museus privados, dizem também do prestígio do proprietário. Cruzamento de práticas intelectuais e de sociabilidades, a coleta tomará pouco a pouco um aspecto mais sistemático. Estas pequenas peças permanecerão todavia por muito tempo como lembranças de viagens. No século XIX, o jovem Ferdinand Denis se entrega à taxidermia e francesas empalham pássaros que vão vender no Rio para serem comercializados em seguida na França, ou então elas enviam as plumas para montagem em Paris.
A circulação não tem apenas um sentido. Trabalhos atuais exploram o fluxo dos saberes, das formas e dos estilos no mundo colonial e, particularmente, seus ecos no Brasil em termos da arquitetura, da estatuária, dos objetos decorativos, da literatura.
Coleções de viagens e escrita da história
A prova da superioridade dos modernos passa pela escrita dos novos mundos; as compilações de depoimentos em coleções de viagens; as análises em obras de história com vocação universal. A Enciclopédia vai afirmar que, graças aos marinheiros, o mar tornou-se o lugar social de todos os povos da terra.
Na virada do século XVI, o impressor de origem alemã instalado em Lisboa, Valentim Fernandes, divulgou, sob forma de epístolas endereçadas aos humanistas de sua terra natal, as descobertas africanas dos portugueses. A maior parte de suas informações permanceram mansucritas e compiladas em uma obra encontrada em Munique: Manuscrito de Valentim Fernandes. A obra italiana de Ramusio conheceu por sua vez uma larga divulgação e é nesta coleta que aparece o tratado de António Galvão para quem o ideal das Descobertas se baseia em uma comunicação generalizada.
As coleções de viagens, se elas trazem relatos de diferentes origens via tradução e publicação em várias línguas, tomam rapidamente uma tonalidade nacional, religiosa: são os conjuntos protestantes de De Bry, a obra inglesa de Hayluyt e Purchas, as coleções holandesas. Estas coleções anulam as fábulas ou criticam em notas as maravilhas demasiado bizarras, as considerações infundadas. Porque a coleção é uma arma pragmática: o escrito mostra a terra, e reivindica o direito ao desconhecido e à sua conquista.
Diante da proliferação dos depoimentos sobre o desencravamento do mundo, as grandes coleções se especializam, dão relatos sob a forma de resumos ou de trechos escolhidos. Estes compêndios são mais conhecidos do que verdadeiramente estudados, pois a rede das adaptações, traduções, e impressões é complexo: é assim, para ficarmos somente no domínio francês, com Thévenot, abade Prévost, Renneville…
Os homens das Luzes retornarão aos escritos para analisar o ideal de civilidade e de progresso à escala global: as obras de Lafitau e, sobretudo, do Abade Raynal são, neste sentido, fundamentais.
Publicado em 2009
Legenda : História da província Sancta Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. P. de Magalhaes Gandavo. 1576