A fortuna das cartas dos missionários jesuítas nos séculos XVI e XVII
O sistema da correspondência jesuíta ; Uma recepção cuidadosamente programada ; As leituras subterrâneas do século XVII.
A correspondência dos missionários jesuítas no Brasil, redigida durante o século XVI, constitui uma documentação excepcional sobre os índios do continente e sobre os primeiros momentos da colonização. Contudo, foi somente no século XIX que ela passou a ser conhecida por um público mais amplo, graças ao esforço conjunto dos historiadores da jovem nação brasileira que ali buscavam os elementos de uma identidade nacional, e dos próprios jesuítas que se empenhavam em construir e alimentar o mito missionário, justificando assim o ressurgimento da ordem após sua dissolução em meados do século XVIII.
O sistema da correspondência jesuíta
Para compreender o percurso e a recepção das cartas jesuítas durante as décadas que seguiram sua redação, convém descrever brevemente o sistema geral da circulação das cartas. É apenas em 1547, sete anos após sua aprovação oficial, que a Companhia é dotada de um verdadeiro secretariado centralizado, sob a direção do padre espanhol Juan Afonso Polanco. Esta organização tornara-se necessária porque os escritos começavam a circular de maneira exponencial entre Roma e os núcleos missionários cada vez mais numerosos. Na realidade, cada missionário no campo devia produzir um relatório das atividades a cada três meses, um relatório que trazia elementos para alimentar a carta sintética que o provincial devia compor e enviar a Roma quatro vezes por ano. De maneira sistemática, organizou-se desde então a gestão dos escritos missionários divididos em três categorias distintas. As duas primeiras, as cartas do governo e os relatórios de atividade quadrimestrais, não eram destinadas à divulgação pois traziam informações internas e sobre as dificuldades teológicas e políticas das missões, reservadas às altas autoridades da ordem. Estes documentos eram com frequência escritos em código, ou simplesmente em latim, mas sempre enviados em vários volumes para atenuar as dificuldades de expedição. As cartas de edificação, ao contrário, eram divulgadas fora da Companhia, com o propósito de encorajar ao mesmo tempo as vocações missionárias nos colégios de noviços europeus e a propaganda junto aos grandes e aos soberanos.
Uma recepção cuidadosamente programada
As cartas edificantes foram publicadas, geralmente em língua vernácula, pelas tipografias jesuítas em Coimbra, Lisboa, Veneza ou Roma. A Companhia publicou assim algumas antologias de cartas entre 1551 e 1562, em Lisboa em 1551 e na Itália, sempre com o mesmo título de Avisi particolari dall’Indie di Portogallo, um título ao qual o editor acrescentará sucessivamente Nuovi em 1553 e 1562, e Diversi em 1559. Uma dezena de cartas do Brasil, sempre as mesmas, fizeram parte destas antologias em espanhol ou em italiano, que, por outro lado, dedicavam grande espaço às cartas do Japão e da China. É a carta do padre Manuel da Nóbrega, « Informação das terras do Brasil », de agosto de 1549, que foi com maior frequência retomada, no que concerne ao Brasil. A visão do padre, radiosa e confiante no futuro, não era acompanhada de nenhuma sombra e servia perfeitamente ao projeto de apologia missionária da Companhia de Jesus. Os letrados europeus, os nobres e as autoridades da Igreja eram os destinatários privilegiados destas edições. Por outro lado, o secretariado da Companhia cuidava da tradução e da expedição destas cartas edificantes a fim de sustentar o ímpeto e as vocações nos colégios e estabelecimentos jesuítas. Assim a carta de Nóbrega, redigida na Bahia em agosto de 1549, foi lida em Goa já a partir 1550, na residência jesuíta, levando apoio aos missionários, que em 1551 agradeceram seus irmãos brasileiros.
O Brasil jesuíta conheceria em seguida, durante os séculos XVII e XVIII, um eclipse quase total. Em relação a novas terras como o Extremo Oriente, a Nova França ou o Paraguai, ele parecia não mais oferecer uma matéria exótica suscetível de interessar um vasto público. Além disso, na medida em que, de um lado a missão brasileira conheceu uma história movimentada e esteve em conflito permanente com a cúria romana, e de outro a reunião das duas coroas fizera do Brasil uma terra de segundo plano, a coroa espanhola, assim como a própria Companhia, preferiram deixar cair o pano sobre a cena brasileira.
As leituras subterrâneas do século XVII
Contudo, apesar do abandono da tarefa de edição, as primeiras cartas do Brasil continuaram a alimentar, principalmente no interior da Companhia, a reflexão sobre a empreitada missionária. O padre jesuíta Simão de Vasconcelos, que redige em 1663 a Crônica da Companhia de Jesus do estado do Brasil, é o primeiro utilizador das fontes brasileiras, das quais ele reproduz alguns elementos no preâmbulo de sua obra. Mas o trabalho deste jesuíta em desacordo com Roma não conhecerá uma verdadeira posteridade, porque ele celebra, de maneira por demais franca, a especificidade brasileira em detrimento da unidade da ordem. Por outro lado, o padre José d’Acosta, autor de um primeiro compêndio sobre a experiência missionária na América do Sul, com o De procuranda indorum salute, em 1588, e a Historia natural y moral de las Indias, em 1590, que utilizava sem citar explicitamente os primeiros escritos missionários do Brasil, vai garantir a transmissão da experiência missionária do Brasil. Graças à extraordinária difusão de suas obras, a experiência brasileira iria irrigar as escolhas estratégicas dos missionários jesuítas no Paraguai e na Nova França, porque a aproximação entre as populações indígenas se impunha. Os guaranis paraguaios e os huronianos da América do Norte foram avaliados e abordados exatamente conforme as receitas brasilieras. A criação de aldeias indígenas sob a responsabilidade dos padres jesuítas, o aprendizado das línguas, os colégios de crianças, a confissão com intérprete, os manuais de liturgia em língua indígena, constituíram os primeiros gestos missionários jesuítas, formados e aplicados primeiro no contato com os Tupis brasileiros.
Esta transmissão subterrânea confirma a leitura interna daquilo que permanecia o primeiro vestígio do encontro entre os missionários e uma humanidade selvagem, « sem fé, sem lei e sem rei », segundo a fórmula consagrada pelo uso ; o sucesso bastante grande das publicações das cartas edificantes e curiosas no século XVII e XVIII, na França e em toda a Europa ocidental, contribuiu portanto para difundir uma imagem do índio elaborada desde as primícias da evangelização do Novo Mundo, enquanto que o corpus original continuaria disperso e jacente.
Publicado em 2009
Legenda : Recueil. Portraits de P. Joseph d'Anchieta.