Os Ferrez e o Rio de Janeiro

Por dois séculos, quatro gerações da família Ferrez atuaram no Brasil no campo das artes, da cultura e da memória visual. Apesar das diferenças entre si, os Ferrez mantiveram ao menos dois vínculos em comum: a reverência à cultura francesa e o Rio de Janeiro como cidade a construir e imaginar.

A cidade efêmera
 
Entre os cento e oito franceses que desembarcaram no Rio de Janeiro em 1817 estavam Marc e Zéphyrin Ferrez, ex-alunos do escultor Pierre-Nicolas Buvallet, no Institut de France. Eles faziam parte do contingente que, após a queda de Napoleão, buscou exílio no Novo Mundo.
 
Os irmãos ingressaram como escultores e se vincularam ao grupo de artistas bonapartistas que aqui chegou em 1816, liderado por Joachim Lebreton, secretário de Belas Artes no Institut de France. A chamada Missão Artística Francesa veio com a aspiração de implantar um projeto de ensino de ofícios e artes, e acabou por se engajar na criação de uma nova cultura visual, demandada pela transferência da corte de D. João VI para a Colônia, em 1808.
 
Marc e Zéphyrin se tornaram professores de escultura e gravura em metal, respectivamente, na Academia Imperial de Belas Artes, inaugurada após diversos percalços em 1826, sete anos após a morte de Lebreton, seu idealizador. Além do labor pedagógico, os Ferrez atuaram em projetos vinculados à construção do universo simbólico da monarquia. Zéphyrin cunhou as medalhas comemorativas da aclamação de D. João VI, da coroação de D. Pedro I, e do casamento de D. Pedro II. Marc realizou estátuas de D. Pedro I e do patriarca da independência, José Bonifácio
 
Os Ferrez também desempenharam relevante papel como decoradores de monumentos efêmeros, erguidos para celebrar eventos pátrios, como as construções para a aclamação de D. João VI, em 1818, e as esculturas e relevos para a coroação do imperador Pedro II, em 1843. Concebidos para durar pouco, tais cenários neoclássicos, construídos por cima da acanhada cidade real, tinham por objetivo moldar no imaginário social a experiência de uma cidade grandiosa e racionalmente organizada, que deveria perdurar na memória coletiva. Em reconhecimento à sua participação nos projetos do Império, Zéphyrin recebeu o título de Gravador de Medalhas da Casa Imperial.
 
A cidade-paisagem
 
A chegada da fotografia ao Brasil ocorreu cedo, em janeiro de 1840, e encontrou no mesmo D. Pedro II um grande incentivador. Quando Zéphyrin e sua mulher morreram, em 1851, seu filho caçula, Marc Ferrez, tinha oito anos. Pouco se sabe sobre seus anos de formação, a não ser que teria estudado na França e retornado ao Brasil, quiçá em 1863, já adulto. Em 1867, quando o Rio de Janeiro contava com pouco mais de noventa fotógrafos, em sua maioria estrangeiros e consagrados ao retrato, Ferrez figurava como titular de seu próprio ateliê fotográfico
 
Marc optou por dedicar-se, sobretudo, à documentação fotográfica da paisagem, com ênfase nas vistas urbanas. Mais do que continuar em trilhas estabelecidas, ele inovou na representação dessa paisagem, criando fotografias panorâmicas, muitas delas realizadas com uma engenhosa câmera de varredura por ele adaptada. Tomadas em geral desde o alto, em ângulos até então não explorados e desprovidas do ruído visual que encontraria se sua lente estivesse ao nível da rua, suas fotografias construíram a representação de um Rio de Janeiro belo e limpo, que até hoje determina nosso imaginário sobre a cidade. 
 
Marc foi ainda autor do Álbum Avenida Central, impresso na França, com as mais célebres imagens sobre a reforma urbana do Rio de Janeiro, no início do século XX, inspirada na transformação de Paris, comandada pelo barão Haussmann. As fotografias, que apresentavam uma cidade moderna e burguesa, com prédios em estilo eclético e largas avenidas, também contribuíram para fixar o feitio como o Rio de Janeiro passou a ser representado desde então. 
 
Cinema, memória e consolidação do imaginário 
 
Homem da razão técnica, com tino para os negócios, Marc criou estreitos vínculos com estabelecimentos e fabricantes franceses de equipamentos e acessórios para a fotografia, cujos produtos usava e comercializava. Em 1907, após ingressar no negócio do cinema com seus filhos Julio e Luciano Ferrez, se tornou representante e distribuidor exclusivo para o Brasil dos filmes das companhias Pathé e Gaumont. 
 
Os Ferrez também produziram películas nacionais, mas seu alcance cultural foi ainda mais abrangente enquanto agenciadores dos conteúdos franceses vinculados em filmes e cinejornais. Além da distribuição e exibição, eles foram responsáveis pela escolha dos títulos aqui apresentados nas primeiras duas décadas do século XX, fato que os vincula à transmissão de uma estética e um imaginário que influenciou a formação da elite urbana frequentadora das salas de cinema. 
 
Da quarta geração da família, foi Gilberto Ferrez, filho de Júlio, quem seguiu os passos de seus antepassados. Foi fotógrafo e comerciante, mantendo o envolvimento com o cinema até 1998, como dono do Cine Pathé. Destacou-se, sobretudo, como primeiro historiador da fotografia no país, e pesquisador da iconografia do Rio de Janeiro. Autor de relevantes obras de referência e importante colecionador, Gilberto sistematizou um repertório de imagens já existentes sobre a cidade, operando não apenas na construção da memória, mas na consolidação de uma forma de ver e imaginar o Rio de Janeiro.
 
 
 
Publicado em dezembro de 2022
 
Legenda : South America, Marc Ferrez. 1883
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