Dos 'Canibais' aos 'Coches'

No livro III, publicado em 1588, oito anos após a primeira edição dos Ensaios, oito anos, portanto, após “Dos Canibais”, o capítulo “Dos Coches”, ou seja, “Dos carros”, continua esse movimento de inversão da maneira mais incisiva, e também mais paradoxal. De fato, esses “coches” se aplicam a povos desprovidos de carros, a povos que pura e simplesmente ignoram a roda. Após diversas observações sobre os malefícios dos carros, dos jogos do circo em Roma e da decadência do mundo, Montaigne faz a seguinte observação: “Nosso mundo acaba de descobrir um outro...”. A descoberta da América aconteceu quase um século antes, mas o que é um século aos olhos da história universal? Montaigne se apressa em acrescentar: “E quem pode saber se é o último de seus irmãos?” Provavelmente restam ainda outros mundos a descobrir, como o historiador La Popelinière acaba de formular a hipótese em seu tratado Les Trois Mondes [Os Três Mundos] publicado em 1582, um terceiro mundo austral que possa responder ao Novo Mundo ocidental.

O centro dessa nova digressão americana, que logo adquire as feições de uma eloquência veemente, é o requerimiento, aquele rito através do qual os espanhóis ordenavam expressamente aos índios, e isso diante de um tabelião, de se submeter ao “ Rei de Castilha, o maior Príncipe da terra habitável” e ao Papa, que lhe havia outorgado essa soberania. Uma vez pronunciada a intimidação de praxe, os conquistadores estavam juridicamente fundados a massacrar ou a escravizar uma população hostil. Essa “exortação habitual” é encenada por Montaigne, que lhe sublinha o absurdo. Dos conquistadores que a proferem com arrogância, a palavra passa a seus outros, logo capturada por essas “crianças” que lhes dão uma lição: “A resposta foi esta: Que, quanto a serem pacíficos, eles não tinham a menor cara de serem assim, se assim fossem; quanto ao Rei deles, já que estava pedindo, devia ser indigente e necessitado...” Emprestando da História geral das Índias Ocidentais de Francisco Lopez de Gomara a descrição de um rito jurídico caricatural, Montaigne inverte em favor das vítimas um texto que visava fazer apologia dos carrascos: “Ouvimos deles mesmos essas narrações, pois eles não só as confessam, como delas se vangloriam e as pregam”.
 
A inversão é significada pelo espetáculo das “cabeças de alguns homens que haviam sido justiçados ao redor da cidade”, que são mostradas aos espanhóis para fazê-los descer de sua soberba. Decerto a conclusão é remetida ao fim da História. Assim que se fecha a cena da exortação, uma chuva de calamidades se abate sobre o Novo Mundo, precocemente envelhecido pela brutalidade dos Conquistadores. A sobriedade da narrativa, de quatro páginas, inspirada no Brevíssimo relato da destruição das Índias do dominicano Bartolomeu de Las Casas, acentua o efeito cumulativo da catástrofe. O excesso de horrores, despejados em uma litania impassível, engendra um desequilíbrio que fixa, nas derradeiras linhas do capítulo, a queda do Inca de sua liteira, em 16 de novembro de 1532 em Cajamarca, nesta noite funesta da conversa com Pizarro: “Tantos quantos eram os portadores que matávamos para fazê-lo tombar, pois queríamos pegá-lo vivo, e tantos outros, incessantemente, tomavam o lugar dos mortos, de modo que não pudemos derrubá-lo, por mais que matássemos aquela gente, até que um homem a cavalo foi agarrá-lo pelo corpo, e o desmoronou ao chão” – ou seja “o precipitou ao chão”. É com essa queda, em todos os sentidos do termo, ou com esse desmoronar, ou ainda esse desmoronamento, que se fecha a reflexão pessimista de Montaigne sobre a destruição do Novo Mundo.
 
 
Publicado em dezembro de 2022. Traduzido do francês por Márcia Valéria Martinez de Aguiar.
 
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