No contexto da Revolução Francesa, a Sociedade dos Amigos dos Negros lançou um debate público sobre a escravidão nas colônias. Essa experiência repercutiria em países como o Brasil, onde os acontecimentos das revoluções francesa e haitiana emergiram como paradigma para o debate sobre a escravidão.
Uma sociedade antiescravista na França
Em 19 de fevereiro de 1788, às vésperas da Revolução, foi formada, em Paris, a Sociedade dos Amigos dos Negros, primeira organização antiescravista francesa. Entidade de elite, que reuniria figuras como Brissot, Condorcet, Mirabeau, La Fayette e o abade Grégoire, os Amigos dos Negros, por sua organização, seus meios de ação e o caráter restrito de sua composição, constituíam mais um grupo de pressão do que um movimento de massa. Não obstante, o contexto revolucionário, com a instituição da liberdade de imprensa e de um regime parlamentar, lhes permitiria levar sua causa para a cena pública. Não defendiam um programa abolicionista estrito, mas um antiescravismo gradualista, no qual o fim da escravidão aparecia apenas como resultado derradeiro de medidas destinadas a suavizar a condição dos escravos. Seu objetivo imediato: a interdição do tráfico negreiro, medida capaz de promover uma transformação progressiva do sistema colonial, tornando-o mais humano, seguro e rentável
A Revolução Francesa e a escravidão colonial
Ainda que os princípios da Revolução ratificassem a causa antiescravista, a condição da França de potência colonial, dependente do comércio de produtos coloniais, opunha os Amigos dos Negros ao poderoso “partido colonial”, que reunia representantes das colônias e dos portos franceses. Tal aliança permitiu bloquear as tentativas de supressão do tráfico, o que levou os Amigos dos Negros a privilegiar a causa das pessoas de color: os negros ou mestiços livres das colônias, cuja ascendência africana, por vezes distante, os condenava a um regime de segregação. Esses livres de cor, muitos deles proprietários de terras e escravos, reivindicavam o reconhecimento de seus direitos políticos, sob o argumento de que eram a maior proteção contra uma revolta de escravos. Aliás, a igualdade com os brancos somente seria decretada em março de 1792, no contexto da grande insurreição dos escravos de São Domingos, iniciada em agosto de 1791. A perspectiva de perda da principal colônia francesa permitiu aos Amigos dos Negros obter seu único sucesso legislativo.
A evolução dos acontecimentos em São Domingos, colônia ameaçada por potências estrangeiras, conduziria à abolição da escravidão, decretada pela Convenção em 4 de fevereiro de 1794. Essa medida, destinada a obter a adesão dos insurretos negros à República francesa, era, por seu caráter abrupto, a antítese do gradualismo dos Amigos dos Negros. Não obstante, a Sociedade se reformaria nos anos seguintes, a fim de repensar o mundo colonial pós-abolição. Sob o Consulado, a decisão de reintroduzir a escravidão nas colônias conduziria os negros de São Domingos a uma guerra de independência e à criação de um novo Estado livre, o Haiti.
Grégoire e o Brasil
Tal fenômeno repercutiu por todo o mundo, como no Brasil, onde, no início do séc. XIX, a revolução dos escravos pairava como uma nuvem sobre a ordem estabelecida. O conceito de “haitianismo” passou a ser empregado para atacar o abolicionismo estrito, ao mesmo tempo que, no campo oposto, o Haiti emergiu como símbolo de luta contra a opressão. É revelador, nesse sentido, que a obra do abade Henri Grégoire (1750-1831), um dos mais eminentes Amigos dos Negros, tenha se difundido no país. Em De la littérature des Nègres (1808), ele repensava a causa antiescravista à luz da experiência do Haiti, concluindo pela possibilidade de propagação do modelo haitiano, com a emancipação dos escravos no restante das Américas. Grégoire não abandonara suas convicções gradualistas; apenas reconhecia a abolição violenta como resultado dos preconceitos da elite colonial.
Grégoire desejava a difusão dos padrões civilizatórios e religiosos ocidentais, ideia frequente nos primórdios do discurso antiescravista brasileiro, amplamente informado pelo discurso iluminista francês. Frei Francisco do Monte Alverne, por exemplo, ressaltava o papel do cristianismo na superação da escravidão e das desigualdades dela decorrentes. Da mesma forma, Monsenhor Pedro Machado Miranda Malheiro, com quem Grégoire mantinha relação epistolar, defendia a difusão da civilização europeia, por meio religião, da ciência e da cultura. A disseminação das ideias de Grégoire chegou a alimentar, em 1831, o rumor da existência, no Rio de Janeiro, de uma sociedade abolicionista “gregoriana”, centrada na figura do médico Joaquim Candido Soares Meirelles (1797-1868). A anedota permite constatar não somente a recuperação dos ideais antiescravistas franceses no Brasil, mas também a intensidade do temor de que um movimento de tipo haitianista pudesse abalar a monarquia brasileira.
Publicado em 2018
Legenda : De la littérature des nègres ou Recherches sur leurs facultés intellectuelles, leurs qualités morales et leur littérature (...). H. Grégoire. 1808