Trocas de modernidades

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Nas primeiras décadas do século XX, as condições para se sair do diálogo assimétrico entre europeus e americanos parecem reunidas. De um lado do Atlântico, a cidade vertical, a sede e a fixação do moderno reafirmam EM alto e bom som a ultrapassagem da "infância".

No outro, a modernidade não opõe mais civilização e barbárie, mas vai beber em todos os primitivismos, exaltando-os: arte negra, mitos e ritos indígenas… Porém, salvo raras e notáveis exceções, os diálogos franco-brasileiros terão ainda que padecer de mal-entendidos.

As Notes de voyage dans l’Amérique du Sud, de Georges Clemenceau (1911) dão o tom, que questionam a "enfatuação" francesa. O ministro plenipotenciário Paul Claudel, no Brasil de dezembro de 1916 a 1918, faz inúmeras observações em seu diário e em sua correspondência, mas sua obra se revela menos permeável ao estranhamento do que a do seu secretário Darius Milhaud, cuja música vai, ao contrário, impregnar-se de sons e ritmos populares brasileiros. Autor de L’Homme et son désir, balé composto no Rio em 1917 baseado em um enredo de Claudel e representado em Paris quatro anos mais tarde, de Saudades do Brasil (1920), e de Le Bœuf sur le toit (1920, fazendo referência a uma partição de Zé Boiadêro), Milhaud precede o sucesso dos Oito Batutas no dancing Shéhérazade, em 1922, e o reconhecimento parisiense de Heitor Villa-Lobos, cuja primeira estadia em Paris data de 1923. O mesmo ano do encontro fecundo e decisivo, sempre em Paris, de Blaise Cendrars e o casal "Tarsiwald" (Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, assim unidos sob a pena de Mário de Andrade).

Antes de mais nada, as temporadas parisienses da artista se inscrevem na tradição do percurso de formação: a partir do verão de 1920 ela frequenta as academias Julian e Émile Renard, depois, em 1923, os ateliês dos cubistas André Lhote, Albert Gleizes e, sobretudo, o de Fernand Léger. Suas duas exposições individuais na Galeria Percier, em 1926 e 1928, revelam, porém, uma artista dona de um estilo próprio e portadora do projeto modernista brasileiro, em busca de legitimação. Isto é ainda mais evidente para o poeta brasileiro, que chama a atenção de Jules Romains (acompanhando a atualidade sul-americana graças especialmente a Jules Supervielle e a Henri Hoppenot), faz uma visita a Adrienne Monnier… Em 11 de maio de 1923, Oswald de Andrade dá uma conferência sobre "O esforço intelectual do Brasil contemporâneo" na Sorbonne, e consegue se aproximar de Valery Larbaud na esperança de ser traduzido. No dia 19 de agosto de 1925, pela editora Au Sans Pareil, é lançada a sua coletânea Pau Brasil, dedicada a Blaise Cendrars… Vale lembrar que, em se tratando da galeria Percier ou da editora, o casal devia muito a sua amical cumplicidade, que lhes abrira ao mesmo tempo várias portas dos meios literários e artísticos de Paris.

Em contrapartida, os modernistas possibilitaram ao poeta viajante fugir da artificialidade e do conformismo da vida parisiense. É a célebre viagem de 1924, primeira de uma série de três ao menos (ou seis imaginadas), que o leva do Rio a Santos, à então incontornável São Paulo, e no rastro dos tesouros barrocos de Minas da era colonial. Estas trocas impregnam a poesia pau-brasil de Oswald de Andrade, e inspiram o escritor suíço, cuja obra conhece uma virada significativa. No entanto, de um lado e outro os laços irão se desfazendo, no limite dos projetos literários de cada um: a modernidade nacional, ou o curto-circuito, lírico e instantâneo, do instintivo e do moderno. Somente vão perdurar a relação criada entre Cendrars e Paulo Prado, o ensaísta e mecenas modernista, e o "renascimento da chama, [o] contrachoque", tão transparente quanto subterrâneo, das viagens brasileiras: Une Nuit dans la forêt (1929), Histoires vraies (1937), La Vie dangereuse (1938), D’Oultremer à indigo (1940), Brésil (sobre fotografias de Jean Manzon, 1952), Le Lotissement du Ciel (1949)...

Na verdade, apesar de um universo parisiense curioso pela América Latina — mas de uma certa América Latina, previsivelmente surpreendente —, e de uma significativa presença brasileira em Paris (fora os nomes já citados, seria preciso acrescentar as presenças mais ou menos longas de Vicente do Rêgo Monteiro, Victor Brecheret, Di Cavalcanti, Sérgio Milliet, e, mais tarde, Ribeiro Couto e Cícero Dias), as obras de Mário e Oswald de Andrade levaram mais de cinquenta anos para serem traduzidas e publicadas na França, para uma recepção ainda mal estabelecida.

Antes da vinda de Bernanos, da passagem de Caillois ou do retorno de Michaux…, um outro escritor francês se aplicou a um significativo papel de passador e de coletor, durante bastante tempo pouco percebido: Benjamin Péret. Tendo se casado em 1928, em Paris, com a cantora brasileira Elsie Houston, ele desembarcou em São Paulo em fevereiro de 1929, onde foi recebido pelo grupo "antropófago". Fez a apresentação do surrealismo em uma conferência, e se interessou pelas religiões populares, escrevendo para a imprensa local sobre a macumba e o candomblé. Mas seu ativismo trotskysta — aderindo à Liga Comunista de Oposição, ele traduziu para o português Literatura e Revolução e militou no sindicato dos corretores — lhe valeu a expulsão em dezembro de 1931. O casal se separou dois anos mais tarde. E Péret só voltou ao Brasil em 1955-1956, para visitar os índios da Amazônia, completar sua Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d'Amérique (1959), redigir um longo ensaio sobre o Quilombo de Palmares, rever seu filho Geyser, nascido em 1931, e seu cunhado Mário Pedrosa, importante crítico de arte…

Os brasileiros nem por isso aderiram em massa às teses surrealistas, que deixaram certamente mais marcas na Argentina ou no México. Mas será o mais importante, dessas transferências imateriais entre a França e o Brasil que não sabemos bem medir? Pelo número de linhas escritas sob influência, ou a impalpável centelha constantemente renovada e capaz de turvar, de deslocar, de súbito transportar o outro dos territórios criadores?

Publicado em 2009

Legenda : Notes de voyage dans l'Amérique du Sud : Argentine, Uruguay, Brésil. G. Clémenceau. 1911