Montaigne. 'Dos Canibais', Os Ensaios, I, 31

O próprio nome dos Canibais está ausente do capítulo, exceto de seu título, no qual aparece como uma espécie de provocação, ou um singular toque de ironia. Canibal é de fato derivado de Caribe, aquela etnia das Pequenas Antilhas que se refestelava com os conquistadores.

Os Canibais que Montaigne nos apresenta na primeira edição dos Ensaios em 1580  são na verdade os Tupinambás, descritos anteriormente por André Thevet em 1557 e depois por Jean de Léry em 1578, Tupinambás do Brasil, sem dúvida antropófagos, mas os melhores aliados dos franceses em sua luta contra os portugueses, nos tempos da efêmera França Antártica fundada em 1555 por Villegagnon na baía do Rio de Janeiro.

Canibalismo de palavras

O capítulo “Dos Canibais” se abre com a retomada literal de alguns comentários de Urbain Chauveton sobre Nova História do Novo Mundo de Girolamo Benzoni, que refuta a hipótese segundo a qual a América seria um vestígio da Atlântida ou uma área de expansão das antigas colônias cartaginesas. O empréstimo literal de Chauveton feito por Montaigne e, também, o discurso de Michel de l’Hospital pronunciado diante do parlamento de Bordeaux, serve para mostrar a flutuação não apenas de nossos conhecimentos, mas do próprio mundo, como prova o movimento das dunas do Médoc, esses “grandes montes de areias moventes” ou, em outras palavras, essas montanhas de areia que o oceano vai empurrando à sua frente e que “invadem a terra firme”. A relatividade de nossos conhecimentos assemelha-se a essas areias moventes que vão avançando e transformam terras férteis em “magras pastagens”.

Em seguida, o ataque contra os « cosmógrafos » retoma o prefácio da História de uma viagem feita à terra do Brasil, em que Jean de Léry fulminava André Thevet, promovido, após seus périplos no Levante e na América, a “cosmógrafo do rei”. A História de uma viagem de Léry já é esta “narração particular” que Montaigne preconizará. Na falta de uma ciência universal, ele faz valer o testemunho de um de seus criados, “homem simples e grosseiro”, que passou dez ou doze anos no Brasil, dali trazendo redes, plumarias e paus-de-chuva. Seu autor cumpre à perfeição o programa modesto do “topógrafo”, antítese perfeita do presunçoso cosmógrafo universal.

Para Montaigne, o Canibal da América é um pouco a reencarnação do gimnosofista, cuja simplicidade transportava de admiração os antigos gregos. Neste lugar outro, mais sonhado que visto, “não existe nenhuma espécie de tráfico; nenhum conhecimento de letras; nenhuma ciência dos números; nenhum nome de magistrado, nem superioridade política; nenhuma servidão; nenhuma riqueza ou pobreza; nenhum contrato; nenhuma sucessão; nenhuma partilha; nenhuma ocupação além das ociosas; nenhum respeito de parentesco além do comum; nenhuma roupa; nenhuma agricultura; nenhum metal; nenhum uso de vinho ou trigo. Nem mesmo as palavras que significam a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a difamação, o perdão”.

A fórmula negativa – “eles não têm nenhum, nenhuma, nem, nem...” tende a alegorizar o selvagem, a separá-lo de sua realidade etnográfica, na qual efetivamente ele exerce a agricultura, se dedica à economia de troca e reconhece um sistema de parentesco extremamente complexo. Desse modo o ameríndio supera até mesmo “todas as pinturas com que a poesia embelezou a idade dourada”. A idade de ouro, idade de abundância, tal é o modelo que comanda a fórmula negativa. Esta apologia do índio, em quem revivem as virtudes heroicas de um Leônidas ou de um Ischolas, desemboca no reconhecimento do relativismo das culturas: “Cada um chama de barbárie o que não é de seu uso.”

Leitor desta passagem dos Ensaios, na tradução de John Florio, William Shakespeare atribui ao velho Gonzalo de A Tempestade a mesma enumeração admirativa. Na boca deste velho um pouco gagá, a fórmula negativa adquire uma feição irônica. O meio-negro Caliban, anagrama de “Canibal”, logo traz a esta divagação um desmentido implacável. Gonzalo é ridiculizado pelos outros personagens. Seu Estado Ideal não tem a menor chance de se concretizar. Gonzalo não é rei, e não tem nenhuma pretensão a sê-lo.

Ao termo paradoxo, usado para designar essa passagem de Montaigne, podemos preferir o de “declamação”, que designa o exercício de desenvolvimento oratório sobre um dado tema que os retores recomendavam para o treino do orador. Lei e causa fictícias levam a um processo fictício, nisso consiste a declamação. Trata-se de um “ensaio” no sentido estrito do termo, exercício de pensamento sem fronteiras e sem rédeas. A acrobacia é ainda mais perigosa por brincar com os mais bem ancorados tabus do cristianismo: nudez, poligamia, canibalismo; recriminações contra as esposas de aquém-mar, combinação sabiamente dosada de razões médicas, sociológicas e morais no caso da antropofagia, pirueta do calção (ou do culote) que finaliza bruscamente o capítulo. Entre as fontes de Montaigne, uma das mais prováveis é La Pazzia, libelo publicado em Veneza em 1554 e traduzido em francês já em 1566 com o título Louanges de la Folie [Louvores à Loucura]. Esse “tratado muito bem-humorado em forma de paradoxo”, inspirado em Erasmo, refere-se a um povo descoberto na Índia Ocidental, “que bem-aventurado sem leis, sem letras e sem sábios de qualquer espécie”, vivia a melhor vida do mundo.

O que está em jogo nas guerras canibais é absolutamente moral e nada tem a ver com a apropriação de quaisquer bens materiais: terras produtivas que os ameríndios não têm para lavrar, riquezas que não possuem, corpos impróprios a qualquer outro exercício além da caça, da dança ou da guerra. Os Canibais não fazem escravos, e se acontece-lhes de transgredir os limites naturais, é para voltar, uma vez obtida a vitória, “às suas terras, onde não lhes falta nenhuma coisa necessária”. Os prisioneiros levam uma vida de homens livres, caçando em companhia de seus vencedores, amando uma mulher da tribo, e o fruto de sua execução será definitivamente menos material que simbólico.

A América é vasta demais para que se reproduza um cenário comparável ao do cerco de Alésia ou de Numância. É “para representar uma extrema vingança”  que os Tupinambás devoram com gosto seus inimigos, não para se alimentar. Em sua guerra “absolutamente nobre e generosa”, não se trata nem de limites territoriais nem de sujeitar corpos. A carne do prisioneiro que se vai devorar não é de modo algum um alimento, é um signo, e é precisamente este signo que o vencedor ingere e faz seu. Ao anúncio de seu massacre e do festim que será feito às suas custas, os cativos replicam com desafios e acusações de covardia. Enquanto o assassinato do prisioneiro e a distribuição do menor “fiapo” de sua carne preenchiam capítulos inteiros em Thevet e Léry, Montaigne comete uma elipse deliberada. Em vez de uma narrativa circunstanciada, meras duas linhas: “Feito isso, eles o assam e o comem em comum e enviam fiapos aos amigos que estão ausentes”.

Assim como no Elogio da Loucura, de Erasmo, a Loucura fala, em “Dos Canibais” cede-se, ao final, a palavra aos “Canibais”, que se exprimem sem freios e sem censura. Três deles desembarcam em Rouen, onde Montaigne pôde encontrá-los no outono de 1562, e lançam a seus interlocutores umas boas verdades, que fazem eco à Servidão voluntária de Étienne de La Boétie. Em vez de admirar “a forma de uma bela cidade”, eles se espantam em ver um rei adolescente – o jovem Carlos IX, de doze anos de idade – comandar os robustos suíços de sua guarda. Como é possível que um ser tão fraco faça com que a ele se curvem sólidos rapagões que estariam bem mais aptos a comandar que ele? A surpresa das pessoas do Novo Mundo diante desses “homens feitos, de barba, fortes e armados”, que obedecem a uma criança, lembra a indignação oratória da Servidão voluntária. « Que vício infeliz », exclamava La Boétie, que um número infinito de pessoas suporte a tirania, “não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um único homúnculo”, de um homenzinho qualquer “e no mais das vezes o mais covarde e efeminado da nação”!

A principal superioridade do rei, no país dos Canibais, não é a de marchar à frente de todos na guerra? Fora essas circunstâncias extremas, em que convém expor sua vida para salvar a comunidade, o rei perde qualquer espécie de prerrogativa.

Os Canibais, em Rouen, escandalizam-se também com a desigualdade que reina nas ruas. Ao ponto de temerem – ou desejarem, não sabemos bem – que os mendigos, “descarnados de fome e de pobreza”, que vagueiam nas portas dos ricos, os peguem pela goela, ou toquem fogo em suas casas. Da “perda triunfante” do canibal agonizante à profecia incendiária que um de seus irmãos dirige, do meio de uma das cidades deles, aos europeus intrigados, a mesma palavra vindicativa reflui, deslocada da vítima para o carrasco real ou simplesmente potencial. Assim é o europeu, cuja sociedade civil, dominada pelo antagonismo de ricos e pobres, ameaça explodir.

Para concluir, ou não concluir, tão grave reflexão, Montaigne finge exprimir reservas quanto ao elogio dos canibais, reservas puramente vestimentares: “Tudo isso não é nada mal: mas, como, eles não usam calção superior!?” Como acreditar neles? Eles não usam culote ! Definitivamente, eles não são sérios !

Publicado em dezembro de 2022. Traduzido do francês por Márcia Valéria Martinez de Aguiar.

 

Legenda : Essais de Michel de Montaigne : texte original de 1580, avec les variantes des éditions de 1582 et 1587. 1870-1873