No início do século XXI, os poetas populares brasileiros continuam a declamar a história de Carlos Magno e dos pares da França, enquanto festas populares reproduzem as lutas entre mouros e cristãos. Um salto cultural oceânico, reunindo Idade Média e Brasil contemporâneov
Uma transferência transatlântica secular
Mais de dez séculos separam a Chanson de Roland, a mais antiga canção de gesta francesa, das mais recentes versões brasileiras que compõem o ciclo carolíngio. A matéria de França – também chamada nos estudos brasileiros de "matéria carolíngia" – nunca deixou de alimentar a criação épica e dramática europeia, até chegar ao mundo colonizado (América Latina, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde). Atravessando fronteiras geolinguísticas, ela foi objeto de múltiplas transferências culturais, dando origem a textos orais ou escritos marcados tanto por sua movência como pela persistência de esquemas narrativos.
O caso do Brasil é exemplar a esse respeito: embora distante da Idade Média francesa, foi terreno de uma implantação fértil e multifacetada desta matéria.
De Charlemagne a Carlos Magno
O manuscrito de Oxford da Chanson de Roland (fim do século XI - início do século XII) é o registro escrito de uma tradição que circulou oralmente durante três séculos através do canto dos jograis. Dentre as canções de gesta compondo com a matéria França se encontra a canção de Fierabras (século XII), também anônima, cujo texto se conserva em vários manuscritos em línguas de oil e de oc: é esta canção que estará principalmente presente no cordel brasileiro.
Em 1478, Jehan Bagnyon a coloca em prosa em Genebra, lhe dando primeiro por título Roman de Fierabras, e mais tarde Conquêtes du grand Charlemagne. No século XVI, uma versão castelhana foi escrita e impressa por Nicolás de Piamonte, a Historia del Imperador Carlo Magno y los doce pares de Francia (1525). Paralelamente a estes textos em prosa, versões versificadas também foram escritas, sobretudo nos reinos italianos, inspirando Boiardo e Ariosto em suas obras Orlando Innamorato e Orlando Furioso (final do século XV – início do século XVI). Romances com matéria carolíngia também circulam nesse período nos territórios ibéricos. Enfim, no século XVIII, um livro em prosa portuguesa cruza as versões francesas, hispânicas e italianas: a Historia do imperador Carlos Magno e dos doze paros de França, de Jeronymo M. de Carvalho e Alexandre G. C. Flaviense. Este livro chegará ao Brasil nas malas dos colonizadores portugueses durante o século XIX, acompanhado de versões reduzidas em verso ou em prosa, na forma de pliegos espanhóis ou de folhetos portugueses. Juntamente com a Bíblia, ele será um dos principais títulos presentes nas casas grandes do Brasil colonial.
O ciclo carolíngio no cordel e nas festas populares
A matéria de França se encontra no Brasil sobretudo na literatura de cordel – que narra as aventuras dos Pares de França em versos rimados –, assim como em festas populares com temática carolíngia, reunindo jogo dramático e celebração religiosa.
Os folhetos de cordel são originalmente livros de venda ambulante impressos em papel barato (final do século XIX - início do século XX). Compostos por estrofes regulares em versos rimados (na maioria das vezes, sextilhas de sete pés), permitem o desdobramento das mais diversas histórias. "Literatura popular em verso" para Ariano Suassuna (1986), "memória de vozes, celeiro de histórias" para Idelette Muzart–Fonseca dos Santos (1997), os folhetos são o suporte escrito de histórias declamadas ou cantadas sobre toadas típicas conhecidas pelos cantadores e cordelistas, os menestréis do Nordeste brasileiro.
E de fato, a matéria de França é uma das temáticas de predileção do cordel desde suas origens. Vários títulos compõem o ciclo carolíngio, narrando partes do Fierabras ou do Roland. Entre os mais famosos estão A Batalha de Oliveiros com Ferrabraz e Prisão de Oliveiros, ambos de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), e Roldão no Leão de Ouro de João Melchíades Ferreira (1869-1933). "Conservatório do imaginário e do discurso poético medieval" para Paul Zumthor (1980), o elemento carolíngio permeia a retórica de outros folhetos, em especial as histórias do ciclo do cangaço e as cantorias.
Este fenômeno poético se estende a outras expressões culturais populares. Festividades locais, muitas vezes ligadas a festas patronais, encenam a luta entre mouros e cristãos, narrando episódios extraídos da matéria de França. Cavalhadas, cheganças, lutas de mouros e cristãos, todas são celebrações onde pessoas das localidades onde a festa acontece são convidadas a participar da encenação das lutas e ao teatro de rua, a pé mas também a cavalo (Cavalhada de Pirenópolis, Goiás) ou até mesmo de barco (Chegança de Pilar, Alagoas).
Assim, se Carlos Magno repousa em seu túmulo em Aquisgrão, seu espírito continua vivo nos textos, nas canções e no imaginário coletivo brasileiro.
Publicado em Setembro de 2023
Legenda : La conqueste du grand roy Charlemaigne de Jehan Bagnyon, [entre 1552 et 1593]