A Carte de l’Amérique méridionale não representava a configuração do território do Brasil tal como era, mas como os Portugueses o desejavam, se estendendo bem além da linha imaginária fixada pelo Tratado de Tordesillas que de maneira geral funcionava, até então, como fronteira oficial, exceto em alguns locais que haviam sido negociados separadamente.
O início de uma colaboração
A partir da década de 1720, o diplomata português Dom Luís da Cunha (1662-1749) e o geógrafo francês Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville (1697-1782) se associaram. Em 1741, eles renovaram a colaboração para realizar um mapa geral da América do Sul, intitulada Carte de l’Amérique méridionale, impresso em 1748 – um manuscrito está guardado sob a cota Ge C 11339 (Rés.). Trata-se de um mapa que propõe, pela primeira vez e de forma global, novas linhas de fronteira entre as Coroas de Portugal e de Espanha na América.
Quebra-cabeça americano
D’Anville era um geógrafo de gabinete e produzia sua cartografia a partir de informações recolhidas in loco por outros. Essas chegavam-lhe às mãos na forma de mapas e de relatos textuais de viagens e descrições geográficas, impressos ou manuscritos, que serviam para produzir novos mapas ou atualizar os já existentes, retratando lugares ainda pouco ou nada visitados pelos europeus. A crítica das fontes disponíveis, não raro contraditórias entre si, compunha o que se pode chamar de um “quebra-cabeça” cartográfico, no qual, no entanto, as peças não estão previamente definidas.
Grande parte da fama que d’Anville angariou deveu-se ao seu domínio dessa etapa de crítica das fontes, que exigia um sofisticado apuro técnico e intelectual, mas também uma boa dose de intuição. Para descobrir como d’Anville montou o quebra-cabeça que resultou na Carte de l’Amérique méridionale, é necessário buscar as fontes cartográficas onde embasou sua geografia, como se observa na Imagem 1.
A fim de obter uma melhor representação geográfica da América portuguesa, Dom Luís da Cunha forneceu à d’Anville as fontes necessárias para a produção do mapa. O geógrafo descreveu suas fontes em três memórias geográficas que escreveu, sucessivamente, para justificar a composição da sua Carte de l’Amérique méridionale. O material cartográfico utilizado, alguns citados a seguir, pode ser remontado a partir da consulta à Coleção d’Anville da BNF sob a cota Ge DD 2987.
Imagem
Quebra-cabeça americano: algumas fontes da Carte de l'Amérique mériodionale
[[{"type":"media","view_mode":"media_large","fid":"2035","attributes":{"alt":"","class":"media-image","height":"270","style":"width: 480px; height: 270px; float: left;","typeof":"foaf:Image","width":"480"}}]]
Source : Coleção d’Anville. BNF. DCP. Fondo Ge DD 2987.
A América nos mapas da Collection D'Anville da Bibliothèque Nationale de France
No que diz respeito à América meridional, o Brasil constitui a província que agrega o maior número de mapas, totalizando 78 cartas, 18,6% desse conjunto. Sua grande extensão e sua diversidade geográfica explicam essa predominância, mas também a necessidade de legitimar o domínio luso-brasileiro de um enorme território, que buscava se projetar para oeste. Muitas delas foram fornecidas por Dom Luís da Cunha, outras por Charles Marie de La Condamine (1701-1774), ue foi um dos membros da Académie des sciences de Paris a ir à Quito, integrando uma missão geodésica com o fim de medir os graus de um arco de meridiano junto ao Equador. Para voltar à França, La Condamine desceu o rio Amazonas, o que permitiu que d’Anville desenhasse a Carte du cours du Maragnon ou de la grande route des Amazones (9542) e (9543), o primeiro mapa do rio baseado em levantamentos de longitudes.
Foi fundamental para d’Anville ter tido acesso a uma cartografia manuscrita portuguesa, sem a qual não poderia ter imprimido ao seu mapa uma configuração adequada do Brasil, pois os portugueses buscavam monopolizar o conhecimento da sua geografia. Esses 13 mapas tiveram uma importância fundamental. Entre eles figura um plano manuscrito, raro, desenhado em cores, da Baía da Guanabara, área de grande interesse da pirataria francesa, pois era o porto de acesso às frotas do ouro, intitulado Plan de la ville de St Sébastien à la coste du Brésil … (9487), da primeira metade do século XVIII.
estaca-se uma cópia da mão do próprio d’Anville da Carta topográfica de todo o terreno compreendido desde a Barra do Rio Grande de São Pedro… (9471B), tirada por ordem do brigadeiro português José da Silva Paes e executada por Francisco de Barbuda-Maldonado. Esse processo de cópia de originais portugueses era comum por parte de d’Anville, pois originais lusitanos manuscritos eram raros e, em teoria, deveriam permanecer secretos. Por exemplo, D’Anville deveu o traçado do rio Madeira principalmente a um jesuíta mercedário chamado Ignacio dos Reys. Foi na casa do cônsul português em Paris, amigo de Dom Luís da Cunha, Pedro Nolasco Convay, que este desenhou para o geógrafo três cartas da região a partir dos desenhos e instruções desse religioso. Uma delas intitula-se Carte particulière de l’entrée du Pará (9553), copiada de um original de Ignacio dos Reys, de 1729.
Parte dos esboços manuscritos desenhados por ele, que aparecem na Coleção, são estudos cartográficos para compor uma parte de um mapa que estivesse produzindo. Em geral, baseiam-se em mapa original, manuscrito, redesenhado por d’Anville, utilizando um tamanho menor que o original e maior do que o do mapa finalizado, empregando uma linguagem geográfica universal. Permitem que o geógrafo trabalhe uma região em versão ampliada, conferindo-lhe maiores detalhes. Por exemplo, para desenhar o rio Tocantins na Carte de l’Amérique méridionale, d’Anville baseou-se na Carte manuscrite de la navigation de la Rivière des Tocantins (9554 B), de ca.1742-1743, que La Condamine conseguiu em Belém, permitindo uma configuração bem precisa ao curso do rio, posicionado a aproximadamente 32º de longitude. d’Anville começou fazendo um esboço manuscrito que intitulou Amérique. Rivière des Tocantins (GE D 10688). Ele representa os acidentes do rio do original, mas agora com signos cartográficos racionais e iluministas, em tamanho menor já que a carta original media 0,65 cm de largura e 3,33 m de comprimento. Em tamanho menor ainda, esta configuração do rio é transferida para a Carte de l’Amérique méridionale.
La fonction politique de la Carte de l’Amérique méridionale : l’invention du Brésil
A Carte de l’Amérique méridionale não representava a configuração do território do Brasil tal como era, mas como os Portugueses o desejavam, se estendendo bem além da linha imaginária fixada pelo Tratado de Tordesillas que de maneira geral funcionava, até então, como fronteira oficial, exceto em alguns locais que haviam sido negociados separadamente. O mapa atesta do papel geopolítico das cartas, que antecipam a realidade geopolítica do território. Nesse caso, o mapa se torna uma arma política de negociação das fronteiras. Assim, ao contrário do que se acredita corriqueiramente, os mapas precedem os territórios que eles representam e não o inverso. Esta era a intenção de Dom Luís da Cunha ao encomendar a d’Anville a Carte de l’Amérique méridionale: assegurar o sucesso das pretenções portuguesas nas negociações com a Espanha. Nesse sentido, o território brasileiro atual pode ser considerado como uma herança do projeto diplomático de Dom Luís da Cunha para o rei de Portugal, formulado geograficamente por d’Anville: de certo modo, d’Anville e da Cunha inventaram o Brasil.
Publicado em dezembro de 2022
Legenda : Carte du cours du Maragnon ou de la grande route des Amazones dans sa partie navigable [...], Charles-Marie de la Condamine, 1743-1744