A história da fotografia no Brasil é impensável sem os fotógrafos estrangeiros que se estabelecem nos principais centros urbanos do país ao longo do século XIX.
Um dos pioneiros na atividade é o pintor e naturalista francês Hercule Florence (1804-1879), que aporta em terras brasileiras no ano de 1824, fixando-se em Campinas (SP). Antes mesmo da chegada do daguerreótipo ao Rio de Janeiro, em 1839, Florence fotografara com auxílio de câmara escura, chapa de vidro e papel sensível à impressão (1833); experimentara também um sistema de impressão simultânea de todas as cores primárias, batizado de poligrafia. A produção fotográfica dos estrangeiros mostra-se decisiva como forma de acesso à paisagem e à vida social brasileira ao longo do século XIX. Dentre os materiais existentes, destaca-se o álbum Brésil pittoresque (1861), com imagens do francês Jean-Victor Frond (1821-1881).
Se o tom documental do registro fotográfico não exime o fotógrafo (e o seu crítico) da consideração dos desafios formais implicados na imagem, é possível observar um acento mais deliberadamente documental na produção fotográfica do século XIX brasileiro, que encontra desdobramentos no século XX, quando as discussões sobre as aproximações entre fotografia e arte se intensificam sob a égide do fotopictorialismo. A década de 1940 representa uma virada do ponto de vista da construção de uma estética moderna da fotografia brasileira. Ao mesmo tempo, assiste-se aí também à expansão do foto-jornalismo, quando a imprensa recruta um grande número fotógrafos, responsáveis pela alteração do formato e diagramação da mídia impressa no país. As novas revistas ilustradas, O Cruzeiro (1928-1975) e Manchete (1952-2000), marcam época por exibirem imagens de forte impacto, deixando ver como as foto-reportagens beneficiam-se das experimentações do fotopictorialismo. Os fotógrafos franceses, personagens ativos na história da fotografia brasileira do século XIX, reaparecem com força nas revistas ilustradas brasileiras de meados do século XX. O Cruzeiro, especialmente, concede lugar primordial à fotografia em suas páginas, e para isso conta com o fotógrafo e cinegrafista Jean Manzon (1915-1990). No período em que trabalha na revista, de 1943 a 1951, Manzon realiza um número extraordinário de foto-reportagens em parceria com o jornalista Davi Nasser (1917-1980); ele é, de certo modo, o responsável por abrir as portas da publicação para outros fotógrafos como Pierre Verger (1902-1996), Henri Ballot (1921-1997) e Roger Pardini (1923-2007).
Manzon se estabelece no Brasil, em 1940, responsável pelo Setor de Fotografia do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), suporte ideológico do Estado Novo, implantado por Getúlio Vargas (1937). À experiência primeira no DIP segue-se o engajamento em O Cruzeiro, onde cria um estilo próprio. Percorrendo o país, de norte a sul, Manzon e Nasser inauguram a era das grandes reportagens, associadas às idéias de descoberta e aventura (não por acaso o livro por eles publicado, em 1950, intitula-se Mergulho na aventura): visitam territórios indígenas; registram cenas de trabalho no campo e na indústria; o cotidiano urbano; festas e tipos populares; comemorações cívicas e militares; retratos de pessoas comuns e de personalidades do mundo artístico e político. O amplo leque temático e cartográfico dessas foto-reportagens – e que se expandem nos filmes realizados após 1952 – levam a que o poeta Manuel Bandeira em apresentação à segunda edição de Flagrantes do Brasil (1950) fale de sua obra como um retrato de “nossa terra, nossos homens e nossos costumes”.
O estilo de Manzon se define por certos procedimentos recorrentes: a freqüência das tomadas de baixo para cima, o que confere grandiosidade e tom épico às cenas e figuras (que reaparece nos retratos frontais); a predileção por amplas vistas feitas de cima, que produzem, pelo ângulo inverso, a mesma impressão de grandeza; o acento nas poses e coreografias, exacerbadas nas imagens de carnaval, passistas e músicos, que o permitem trabalhar a performance associada ao tratamento grandiloqüente das figuras. O uso intencional da cenografia e a montagem cuidadosa das cenas obrigam a uma maior reflexão sobre o sentido de realismo freqüentemente associado às suas imagens.
Fotografias de Marcel Gautherot (1910-1996) também podem ser vistas nas páginas de O Cruzeiro, a partir de 1947; só que se trata, nesse caso, de colaborações esporádicas, a atuação de Gautherot no Brasil conhecendo outras derivas. Com formação ligada às artes e à arquitetura, e experiência profissional como “arquiteto-decorador” do Museu do Homem, em Paris, Gautherot visita o Brasil pela primeira vez em 1939, quando realiza uma primeira série de imagens do país. No ano seguinte, fixa-se no Rio de Janeiro, passando a realizar trabalhos para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado em 1937, quando se aproxima dos intelectuais ligados ao órgão: além de Rodrigo Mello Franco de Andrade (seu diretor), Mário de Andrade e Lúcio Costa. Sua produção dos anos 1940 e 1950 acompanha as solicitações do SPHAN, comprometido com o inventário e preservação de bens culturais (sobretudo a arquitetura barroca, vernacular e moderna). A amizade com o pesquisador e folclorista Edison Carneiro, por sua vez, leva-o a aderir à Campanha de Defesa do Folclore Nacional, mais um motivo para percorrer o país e registrá-lo: festas folclóricas, danças dramáticas e cultura popular.
As viagens estão na base da produção fotográfica de Gautherot, que corta o país de norte a sul, observando paisagens naturais, tipos humanos, feiras, festas e mercados, com atenção similar a do etnógrafo diante de seus materiais; perspectiva treinada no Museu do Homem, nos diálogos com Pierre Verger e Jacques Soustelle. À vocação etnográfica combina-se o talento do arquiteto para lidar com espaços, riscos e planos, flagrantes em tantas imagens: naquelas feitas em Belém nos anos 1950 (em que velas e mastros se entrelaçam, desenhando relevos originais); nos céus e detalhes da paisagem natural (que freqüentemente adquirem espessura arquitetural) e nos registros específicos da obra de Oscar Niemeyer, que em 1958 convida-o a fotografar a construção de Brasília. A série de Brasília é exemplar pela intimidade que revela entre o ângulo do fotógrafo e as formas do arquiteto brasileiro. As imagens de Gautherot dialogam de perto com as abóbadas, linhas e colunas de Niemeyer, reconstruindo-as pelo modo como as recorta e as articula entre si, assim como à volumetria das nuvens que a luz do planalto faz refletir nos espelhos d’água e superfícies.
Manzon também fotografou Brasília, a pedido do presidente Juscelino Kubitschek, e sua câmera mostrou-se igualmente atenta às curvas de Niemeyer. Mas suas imagens mostram outro tipo de olhar, mais à distância, comprometido com a documentação das etapas da construção dos edifícios e da cidade em seu plano mais geral. As diferenças entre os fotógrafos, que podem ser apanhadas em outras séries, reafirmam a qualidade e o estilo próprio de cada um deles que, a despeito de algumas coincidências de percurso, construíram obras em sentidos muito diversos.
Publicado em 2009
Legenda : Découverte de la Pulvographie. H. Florence. 1860