A sedução do cinema

A influência francesa foi preponderante no Brasil até a expansão de Hollywood. No entanto, a França não deixou de estar presente nas telas e nas mentes dos brasileiros. Essa paixão prolongada nem sempre foi unilateral.

 

Durante a “Bela Época”, a influência europeia no Brasil foi indiscutível. Marc Ferrez, magnífico fotógrafo, filho de um membro da Missão artística francesa, tornou-se, depois da virada do século, importador e distribuidor de filmes franceses e exibidor: o cinema Pathé, no centro do Rio de Janeiro (1907), sobreviveu até o fim do século XX; um milagre, quando tantos cinemas tinham virado templos evangélicos.

O “film d’art” francês é a matriz estética das primeiras ficções nacionalistas, amiúde filmadas por imigrantes imbuídos de patriotismo. Longe dessas iniciativas acadêmicas, a modernidade de Limite de Mario Peixoto (1929), a obra-prima absoluta do cinema mudo latino-americano, expressa uma dívida em relação às vanguardas: a imagem emblemática que abre sua narração exuberante, carregada de angústia existencialista, teria sido inspirada por uma capa da revista ilustrada parisiense Vu, feita pelo fotógrafo André Kertesz.

Mais surpreendente é a contribuição de dois brasileiros à cinematografia francesa do início do século. Candido Aragonez de Faria, um mestre das artes gráficas, é o autor de pôsteres para produções da companhia Pathé-Frères. O cineasta Alberto Cavalcanti começa sua trajetória com uma obra capital, Rien que les heures (1926), depois de ter feito seu aprendizado nos estúdios como decorador de Marcel L’Herbier. A seguir, Cavalcanti participa na experimentação e criação de novas formas do cinema sonoro na França, na Grã-Bretanha e no Brasil, tanto na ficção quanto no documentário. Conforme disse o diretor francês Bertrand Tavernier, Cavalcanti “é um dos espíritos mais apaixonantes do cinema das décadas 1930-1940”.

A revolução do cinema falado

A introdução do som acentua a concorrência entre a Europa e os Estados Unidos, que mantém com o Brasil uma relação triangular característica da produção cultural local. A intensidade dos três polos desse triangulo transatlântico varia conforme as épocas, sem desaparecer nunca. Quando o prestígio de Hollywood atinge o seu auge, a cultura cinematográfica continua sob a hegemonia francesa: as noções de cinemateca e cineclube surgem como invenções parisienses; nas livrarias francesas do Rio ou São Paulo, os cinéfilos assinam as revistas Cahiers du cinéma e Positif.

O grande mediador desse diálogo fértil é sem dúvida Paulo Emilio Salles Gomes, autor da primeira monografia sobre Jean Vigo (Editions du Seuil, Paris, 1957), fundador da Cinemateca Brasileira em São Paulo, introdutor dos estudos de cinema na universidade e mentor das pesquisas históricas sobre a sétima arte no Brasil. Suas sofisticadas críticas de cinema no prestigioso Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo são analisadas e às vezes colecionadas. Na sequência, Jean-Claude Bernardet, discípulo de Paulo Emilio com tese de doutorado orientada por Christian Metz, torna-se um brilhante ensaísta e uma figura da comunidade gay durante a ditadura militar.

O outro arquivo fílmico importante, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, foi dirigido durante um bom tempo pelo crítico José Sanz, um francófilo, testemunha singular do impacto do surrealismo na capital da República no pós-guerra e incansável defensor de Luis Buñuel (ele traduziu para a editora carioca Civilização Brasileira em 1966 a monografia pioneira de Ado Kyrou editada originalmente por Pierre Seghers).  

Cinema Novo

Em Paris, o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC, antepassado da Fémis) atraiu Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Eduardo Coutinho, três iniciadores do Cinema Novo, movimento contemporâneo da Nouvelle Vague francesa. O Festival de Cannes e as revistas especializadas favoreceram o acesso dos filmes brasileiros às salas de arte parisienses. O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte conquistou uma Palma de Ouro controvertida (1962). Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade (1969), lançado como “o primeiro filme tolo e malvado” no espírito irreverente da revista satírica Hara Kiri, assim como Antonio das Mortes (O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro) de Glauber Rocha, permaneceram nas memórias dos cinéfilos.

Os produtores Claude Antoine e Marin Karmitz também ajudaram autores do Cinema Novo durante esse período conturbado. O Brasil seduziu personalidades tão afastadas quanto os cineastas Pierre Kast e Marcel Camus, cujo Orfeu Negro, consagrado por uma Palma de Ouro (1959), antecipou o sucesso da Bossa Nova. A vontade intermitente de estabelecer pontes entre as duas cinematografias culminou com a implantação da Gaumont do Brasil, uma filial da companhia francesa sob a batuta do cineasta Jean-Gabriel Albicocco, que não vingou, infelizmente. Porém, o Centro Georges Pompidou dedicou uma retrospectiva ao cinema brasileiro (1987), cuja extensão jamais foi superada, nem de um lado nem do outro do Atlântico.

Afinal, essa relação entre a França e o Brasil no terreno cinematográfico, pode ser considerada uma atração passageira ou um amor contrariado? A questão fica aberta.

Publicado em Junho de 2023

 

Legenda : Le vieux comédien, affiche de Cândido de Faria