Redes científicas transnacionais na Belle époque O exemplo da Sociedade astronômica da França no Brasil

No final do século XIX, o interesse pelos céus do Sul incentiva a internacionalização da astronomia, particularmente no que diz respeito à América Latina. As práticas astronômicas se desenvolvem nos novos Estados independentes, que constroem prestigiosos observatórios, mas também por meio de redes mais discretas mantidas por sociedades científicas como a Sociedade astronômica da França (SAF).

A SAF é fundada em 1887 pelo escritor e vulgarizador Camille Flammarion. Trata-se de um homem de grande presença midiática, designado na imprensa como “o maior astrônomo da França”, mesmo sendo, na realidade, amplamente autodidata. É também um escritor de talento, que alia o gosto pelas ciências com a fantasia literária e a poesia. É, enfim, o promotor de uma cosmologia amplamente fundada no espiritismo de Allan Kardec, de quem foi, na juventude, discípulo direto. Flammarion defende assim a doutrina da pluralidade dos mundos, cuja existência é então contestada pelos profissionais da astronomia, mas que sensibiliza o público. A SAF é assim um instrumento de produção e de circulação dos saberes, centrada no Observatório de Juvisy-sur-Orge e associada a seu Bulletin, que publica observações de seus membros.

A relação dos associados divulgada no Bulletin permite avaliar a extensão dessa sociedade verdadeiramente mundial no início do século XX. A rede brasileira compõe-se de mais de uma centena de membros, provenientes das ainda pouco numerosas elites. É, contudo, um pouco surpreendente constatar que é no coração do Estado e da astronomia oficial que se encontram seus primeiros membros: temos, em primeiro lugar, o próprio imperador Dom Pedro II, cujo gosto pelas ciências é conhecido. Encontrara Flammarion em Juvisy e apoiara a SAF, de que foi membro fundador. Em seguida, a relação menciona os três diretores sucessivos do Imperial Observatório do Rio de Janeiro: o francês Emmanuel Liais, antigo astrônomo do Observatório de Paris, que chegou ao Brasil em 1858 e foi imediatamente integrado a projetos científicos de envergadura, como a expedição de observação do eclipse solar em Paranaguá, ou a Comissão dos trabalhos geográficos e geodésicos do Brasil. Suas obras, que se trate da Hydrographie du Haut San-Francisco et du Rio das Velhas ou de L'espace céleste et la nature tropicale : description physique de l'univers, d'après des observations personnelles faites dans les deux hémisphères (1865) revelam um fino conhecimento do país. Como diretor, a partir de 1871, fica encarregado de renovar o Imperial Observatório do Rio de Janeiro no Morro do Castelo. É então assistido por um jovem engenheiro belga, Louis/Luiz Cruls que chegou ao Brasil em 1874, igualmente membro da comissão cartográfica, astrônomo, diretor do Observatório a partir de 1881 (naturalizado neste mesmo ano) e admitido na SAF em 1889. Quanto a Henrique Morize, ele assume a direção do Observatório nacional da República brasileira nos novos edifícios do Morro de São Januário, em São Cristóvão, abertos em 1922. 

Indubitavelmente, esses membros trazem sua expertise e sua caução científica à SAF, mas são também avatares. Louis Cruls, que realiza pesquisas pioneiras sobre Marte em 1877, quando tem início a grande controvérsia sobre os canais marcianos, é assim frequentemente descrito como “o Flammarion do Brasil”.

Esses recrutamentos de elite são, contudo, apenas a parte visível do iceberg. Para além dela, o grupo de associados desenha um Brasil educado e moderno que mistura profissões intelectuais, como advogados, médicos, professores, artistas ou jornalistas, a representantes das classes intermediárias: um contador, um telegrafista ou uma professora de Escola Normal.

A cartografia dos membros ilustra uma geografia intelectual do início do século XX, marcada pela herança colonial que confere um peso importante não apenas à capital, Rio de Janeiro, mas também à Bahia, Juiz de Fora (Minas Gerais), Campos (estado do Rio de Janeiro), São Luís (Maranhão) ou mesmo à região amazônica, enquanto São Paulo não se destaca. Se certos membros estão ligados à França – José Abranches de Moura, capitão de artilharia baseado no Maranhão, indica também endereços franceses –, essa rede compreende polos especificamente brasileiros, como os observatórios astronômicos, meteorológicos, as escolas politécnicas ou as comissões cartográficas.

Não é tarefa simples avaliar os efeitos culturais da rede brasileira da SAF, quer se pense nos membros que desenvolvem práticas astronômicas, na vulgarização da astronomia ou na difusão das ideias de Flammarion. Pode-se, contudo, identificar alguns traços desses efeitos na criação, por exemplo, de várias sociedades astronômicas que se referem a Flammarion: a primeira é o Collegio astronomico Camillo Flammarion de São Luís (Maranhão) em 1919, depois, após a Segunda Guerra mundial, as sociedades de amadores e observatórios populares “Camille Flammarion”, em São Paulo e em Mathias Barbosa (Minas Gerais), criados pelo artista, jornalista e astrônomo amador Rubens de Azevedo ou pelo astrônomo Nelson Alberto Soares Travnik: uma disseminação do modelo almejado pelo próprio fundador da SAF.

Publicado em Novembro de 2025

Legenda : L’Observatoire impérial de Rio de Janeiro en 1882 (Morro do Castelo), Liais, E. (1882). Annales de L’Observatoire Impérial de Río de Janeiro, tome Premier.