Episódio pouco lembrado, talvez por ter ocorrido fora do centro político nacional, da contribuição francesa à ciência e à cultura brasileiras foi à fundação da Escola de Minas de Ouro Preto em 1875.
A iniciativa foi toda de D. Pedro II. De volta da viagem ao exterior feita em 1871/72, quando encontrou Pasteur e foi eleito membro do Institut de France, convidou o colega dessa instituição e diretor da École des Mines de Paris, Auguste Daubrée, a visitar o Brasil para estabelecer nele os estudos mineralógicos. O diretor não quis afastar-se do posto recém-ocupado e indicou o jovem Claude Henri Gorceix para a tarefa.
Gorceix formara-se na prestigiosa École Normale Supérieure em 1866. Lá fora aluno de Pasteur, que dele disse ser o melhor do setor de física, com “beaucoup de feu et de zèle”. A École fornecia sólida formação em matemática, física e química. Depois de formado, fez estágio da Escola Francesa de Atenas, onde estudou vulcanismo, adquirindo boa base de conhecimentos geológicos. Convidado por Daubrée em 1873, no ano seguinte já se encontrava no Brasil. Tinha 31 anos de idade. Escolhida a cidade de Ouro Preto para a sede da escola, redigiu logo um regulamento que foi aprovado pelo governo em 1875. As aulas começaram em 1876. A rapidez do processo, inusitada para os padrões da burocracia brasileira, denunciava o dedo do Imperador por trás da iniciativa.
O regulamento, baseado no modelo da École Normale, representava uma revolução nas práticas pedagógicas brasileiras. Incluía coisas inéditas entre nós: concurso de admissão, tempo integral para professores e alunos, ano letivo de dez meses, seguidos de mais dois de trabalhos práticos, boa remuneração dos professores, ensino gratuito, bolsas de estudo, e ainda prêmios de viagens ao exterior para os melhores alunos. Houve várias reações negativas, até mesmo de professores da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. As críticas dirigiram-se à exigência de seleção, às bolsas, à extensão do período letivo, aos altos salários. Novamente, o apoio do Imperador lhe veio em socorro e garantiu a aprovação de quase todas as propostas. Gorceix dava tanta importância às bolsas que se dispôs a pagar metade delas com seu próprio salário. Justificava a decisão pelo fato de ter estudado na École Normale com bolsa do governo. Contraíra com seu país uma dívida que pagaria de boa vontade no Brasil trabalhando a serviço da ciência.
Gorceix esmerou-se também na escolha dos professores. De início, recorreu, sobretudo, a colegas franceses formados na École Polytechnique e na École des Mines de Paris. Entre eles estavam Armand de Bovet, Arthur Thiré e Paul Ferrand. Mas alguns brasileiros estiveram presentes desde o início e aos poucos ex-alunos foram sendo incorporados ao quadro docente.
A Escola teve vida difícil, com poucos alunos no início por causa das exigências do concurso, e problemas de mercado de trabalho. Mas a filosofia de ensino e as práticas pedagógicas nela implantadas foram responsáveis pela formação de um seleto grupo de geólogos, mineralogistas e engenheiros metalúrgicos e civis que se espalharam pelo país, impulsionaram o desenvolvimento siderúrgico brasileiro e foram decisivos na formulação da política mineral do Brasil.
A filosofia e as práticas pedagógicas implantadas em Ouro Preto podem ser resumidas no que até hoje é chamado de “espírito de Gorceix”, um espírito que se transformou no etos da Escola. Ele pode ser resumido em alguns pontos: ênfase no mérito pessoal, no trabalho duro, na criatividade, na pesquisa de campo e de laboratório e, finalmente, na preocupação com a aplicação prática da pesquisa em benefício do desenvolvimento econômico do país, sobretudo no que se referia à mineração e à siderurgia. O principal inimigo a combater, segundo Gorceix, era a tradição livresca, baseado na memorização de textos, que dominava quase todo o ensino brasileiro. Não havia praticamente ensino de ciências nas escolas secundárias brasileiras e mesmo em faculdades como a de Medicina ele era precário. O ensino brasileiro, nas palavras do insuspeito Rui Barbosa, formava um povo de “palradores e ideólogos”. Nesse ponto, Gorceix não poupou nem mesmo seus compatriotas, os lazaristas do Caraça, inimigos, segundo ele da universidade em França. A ênfase na pesquisa ficou registrada no lema gravado no escudo da Escola: “Cum mente et malleo”, “com a cabeça e com o martelo”. O geólogo norte-americano radicado no Brasil, Orville Derby, reconheceu a especificidade da Escola de Minas. Lá se substituíra, segundo ele, o estudo dos livros pelo estudo da natureza.
Proclamada a República, perdido o apoio do Imperador, Gorceix sentiu-se sem condição de continuar à frente da escola que fundara e que dirigira por quinze anos. Regressou à França com sua família brasileira e lá viveu modestamente na pacata comuna de Bujaleuf até a morte em 1919, aos 77 anos. Antes de viajar para o Brasil, escrevera ao irmão: “J’ai révê d'un peu de gloire, quelque bruit autour de moi”. O caráter inovador de sua obra brasileira provocou ruídos na época, sua glória está gravada na história da Escola de Minas de Ouro Preto. Ele pagou ao Brasil o que ganhara da França. O Brasil ganhou da França o que Gorceix lhe pagou.
Publicado em 2009
Legenda : Rapport sur une visite aux "Lavras diamantinas" : gisements de diamant et de charbon de Lençoes, Palmeiras, San-Antonio, Chique-Chique et Mar d'Hespanha, état de Bahia (Brésil). H. Babinski. 1897