O acervo brasileiro do Museu Albert Kahn

As comemorações às vezes são fecundas para os pesquisadores. Foi por ocasião de um projeto de exposição no Museu do Novo Mundo de La Rochelle, no bicentenário da Independência do Brasil, que o autor deste texto pôs as mãos, de modo inesperado, no conjunto do fundo fotográfico brasileiro do museu Albert Kahn.

 

 

Durante muitos anos, apenas cerca de cinquenta autocromos eram conhecidos do grande público. É verdade que, diferentemente da Viagem ao redor do mundo, realizada um ano antes e devidamente documentada, esta Viagem à América do Sul não vem acompanhada de nenhum documento de arquivo que permita explicar sua razão de ser ou seu desenvolvimento. As fotografias estereoscópicas permaneceram assim, durante anos a fio, classificadas em uma caixa etiquetada com o nome do primeiro porto de desembarque – Buenos Aires. Sua redescoberta deu lugar a uma vasta análise, que se iniciou com a exposição de La Rochelle e prosseguiu com a do museu departamental Albert Kahn. Tratava-se ao mesmo tempo, então, de esclarecer o contexto da viagem (situando, uma a uma, as etapas e suas datas, os navios e as listas de passageiros) e de legendar cada uma das fotografias.

O que contém, pois, este fundo, no que diz respeito à parte brasileira da viagem? Notemos em primeiro lugar que é composto por três formas de registro do real: um curto filme (ou, melhor dizendo, imagens filmadas, que não foram objeto de nenhuma montagem), fotografias estereoscópicas (306 no total, sendo 188 placas negativas e 118, positivas) e 51 autocromos. Deste ponto de vista, foi por ocasião desta viagem que Albert Kahn tenta, pela primeira vez, diversas formas de registro do real. O filme de pouco mais de um minuto, realizado na entrada e depois na baía do Rio, é naturalmente tocante, mas não um grande feito técnico. Os autocromos, ao contrário, são de uma qualidade excepcional e constituem, atualmente, as primeiras fotografias coloridas conhecidas do Rio, de Recife e de Petrópolis. Diferentemente das vistas estereoscópicas, tomadas de qualquer jeito, nas ruas ou ao longo dos cais, os autocromos, mais estáticos, foram objeto de uma cuidadosa encenação. Ao que tudo indica, o material foi adquirido no Rio, na única loja que então fornecia as placas autocromáticas dos Irmãos Lumière: a Casa Barrandier.

As temáticas principais deste fundo são as seguintes:

  • A atividade portuária. Nos portos de trânsito (principalmente Santos e Recife), o operador capturou o movimento dos passageiros e dos estivadores nos jogos de formas geométricas dos parapeitos, gruas e outros entrepostos. A notar a ausência de fotos do porto do Rio (lembremos que Albert Kahn investira na companhia Docas de Santos e não no Rio...)
  • O espetáculo da natureza e sua domesticação pela cidade. O maciço florestal da Tijuca fascinou Albert Kahn, talvez porque ele imaginasse (erroneamente) que se tratava do resíduo de uma natureza virgem; fascinou-o também o jardim botânico do Rio, com sua alameda de palmeiras imperiais, ou ainda a arborização das avenidas modernas.
  • A convivência entre a cidade moderna e a cidade tradicional. O operador busca muitas vezes, no ritmo rápido da transformação das metrópoles (São Paulo ou Rio), captar as misturas: as dos vazios urbanos (por vezes escondidos por uma imensa paliçada de madeira) ou ainda as da vida social (modernos empregados, reconhecíveis por seus ternos impecáveis, cruzam os pequenos ofícios da cidade tradicional, descalços, conduzindo carroças de madeira, trabalhando em mercados urbanos...).
  • O universo africano das cidades. No Rio e em Salvador, o operador soube notar outra presença: a dos trabalhadores negros. Menos de 20 anos após a abolição da escravidão, e o apelo à substituição do trabalho forçado por assalariados de origem europeia, a cidade negra continua em atividade: vendedoras de rua, criados, carregadores e transportadores...

A descoberta deste fundo fotográfico constitui uma contribuição excepcional para o conhecimento iconográfico das cidades brasileiras (particularmente para o Rio, com nada menos que 192 clichês) do início do século XX. Apesar de os operadores não terem sido formalmente identificados (o dos autocromos parece não ser o mesmo das vistas estereoscópicas – para estas últimas, poder-se-ia tratar de Alfred Soudieux, que viajou com Kahn), ambos endossaram a filosofia de Albert Kahn, que gestava os Arquivos do Planeta : “fixar aspectos, práticas e modos da atividade humana cujo desaparecimento fatal é apenas uma questão de tempo”.

Publicado em Abril de 2024. Traduzido por Márcia Valéria Martinez de Aguiar

Legenda : Jardin japonais d'Albert Kahn, Boulogne-Billancourt, Agence Meurisse, 1936 

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