As viagens de Auguste de Saint-Hilaire

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De todos os viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil após a instalação da corte de João VI no Rio de Janeiro, o botânico Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) é talvez o que conseguiu a maior notoriedade no país, e isto menos por sua importante obra científica do que por cerca das três mil páginas que compõem o relato de suas expedições.

As quatro partes (oito tomos) de Voyages dans l’intérieur du Brésil foram publicadas entre 1830 e 1851 por diferentes editoras parisienses ; em 1887, a obra foi completada por uma publicação póstuma, editada em Orléans e organizada por um herdeiro de Saint-Hilaire. No Brasil, os primeiros excertos do relato foram traduzidos em português a partir de 1845 e publicados no Recreador Mineiro – primeira revista literária de Minas Gerais, a província que Saint-Hilaire visitara em primeiro lugar e a qual consagrou um grande número de páginas. Foi preciso esperar a segunda década do século XX para que as traduções integrais dos vários tomos de Voyages começassem a surgir, sob títulos diversos e publicados por diferentes editoras brasileiras.

Nascido em 4 de outubro de 1779, Auguste François César Prouvençal de Saint-Hilaire pertencia a uma rica família de orleanenses (Loiret). Após seus primeiros estudos, realizados nos Beneditinos de Solesmes, fez uma formação em comércio e indústria no norte da Europa com o objetivo de dirigir uma empresa familiar (refinaria de açúcar). Tal perspectiva não o seduzia muito, mas a formação não foi inútil : deu-lhe uma visão concreta das aplicações práticas das ciências naturais (perceptíveis em seus escritos) assim como o domínio do alemão e do inglês, indispensável à sua formação científica posterior e que lhe permitiu adquirir uma cultura literária considerável. Saint-Hilaire era na verdade um apaixonado pela literatura romântica e pelos relatos de viagem; em seus escritos, os nomes dos grandes naturalistas aparecem lado a lado com os de escritores e filósofos alemães e franceses : Humboldt, Buffon, Herder, Bernardin de St Pierre, Madame de Staël, Chateaubriand. Saint-Hilaire foi correspondente de Madame de Genlis – autora, entre outros, de La botanique historique et littéraire – que provavelmente influenciou sua reorientação profissional: depois de seu retorno à França, ele decide se consagrar ao estudo da botânica e frequenta cursos no Museu de História Natural e na faculdade de Medicina de Paris.

Em 1816, graças às suas relações familiares, ele consegue integrar a delegação do Duque de Luxemburgo, embaixador extraordinário da França que partia para uma missão diplomática de alguns meses junto à corte portuguesa. Bastante entusiasta e curioso diante da variedade e da exuberância da natureza brasileira – a flora, a fauna, as formações minerais – Saint-Hilaire vai finalmente permanecer « seis anos inteiros » no país a fim de melhor estudá-lo. Rio de Janeiro, seu porto de chegada e de partida, foi naturalmente escolhido como o principal local para depósito de suas coleções de história natural, e onde, em função disso, ele teve que retornar várias vezes. Sua « viagem geral se compôs assim de várias viagens particulares, totalmente distintas » ; mais tarde, a organização da obra e a ordem de publicação das diferentes partes do relato iriam corresponder à cronologia das diferentes expedições.

Antes de empreender a série de grandes périplos, ele herboriza durante vários meses nos arredores do Rio, e faz uma viagem experimental a Ubá, fronteira indígena situada a trinta léguas do litoral, na estrada de Minas Gerais. É verdadeiramente sua primeira experiência de alteridade : o encontro com um grupo de índios Coroados o perturba, e ele não esconde sua desaprovação quando descobre certos costumes dos escravos como os batuques e as danças « indecentes » praticadas pelas negras. Nestes primeiros capítulos do relato já está reunida a maioria dos elementos que caracterizam o conjunto da obra e que a tornaram preciosa tanto aos botânicos quanto aos historiadores, geógrafos e antropólogos brasileiros e brasilianistas. Suas descrições da paisagem dizem respeito, claro, à nomenclatura, à anatomia e à « geografia das plantas », mas elas penetram também o campo da geografia humana: Saint-Hilaire se interessa pelas formas e processos de ocupação e de exploração das terras, pela administração civil e eclesiástica, pelo léxico espacial e pelos topônimos, pelas produções agrícolas, pelo comércio, arquitetura, demografia e pelos costumes das diferentes populações. Ligado às práticas utilitaristas e filantrópicas que caracterizam a literatura de viagem do período, Saint-Hilaire preocupa-se com o destino dos povos autóctones: ele chega mesmo a considerar uma política de cruzamento e miscigenação com os africanos a fim de permitir aos Índios « resistir à superioridade dos brancos ». Notemos de passagem que suas competências linguísticas eram admiráveis: não somente ele chegou a rapidamente dominar as nuances do português, mas interessou-se também pelas diferentes línguas ameríndias. Testemunha direta das « revoluções » latino-americanas, e convencido, a exemplo de Chateaubriant, que « as viagens são uma das fontes da história », Saint-Hilaire obstina-se a comentar tanto os grandes feitos do processo de independência da jovem nação quanto a « pequena » história regional ou local do Brasil.

De volta ao seu país natal, e apesar de uma doença nervosa que o limitava bastante, Saint-Hilaire se lança num trabalho meticuloso de composição dos diferentes tomos de Voyages, o que vai lhe consumir trinta anos. A fim de atenuar a espera dos seus leitores ele se esforça para regularmente publicar trechos da sua obra, notadamente no Les Nouvelles Annales des Voyages. Além do seu diário manuscrito « escrito no local », a redação de Voyages é alimentada também pela consulta a várias obras sobre o Brasil que foram publicadas ao longo daqueles anos, e que o autor « fez todos os esforços para reunir ». O caráter monumental do relato é consequência deste rigor e desta meticulosidade : como notou um dos seus biógrafos, se é verdade que Saint-Hilaire tinha « quase sempre elegância », e que era « sempre lógico, engenhoso e claro » em seus escritos, seu lado « prolixo » e meticuloso era inegável. A preocupação com o detalhe a com a exatidão, o que torna suas descrições tão preciosas aos leitores de hoje, sem dúvida incomodou uma parte do público europeu da época, mais ávido de evasão e de exotismo do que de dados precisos. Esta censura lhe foi feita por pelo penos um de seus leitores : Ferdinand Denis, num artigo publicado na Revue des Deux Mondes, em 1831.

Apesar da saúde frágil, Saint-Hilaire conseguiu construir uma carreira científica e uma imagem pública notáveis. Nomeado Cavaleiro da Legião de Honra em 1826, ele se torna membro da Academia de Ciências em 1830, e quatro anos mais tarde obtém o posto de professor de botânica na Faculdade de Ciências de Paris. É apenas em 1852 que ele vai se aposentar, e morrer no ano seguinte, no castelo da família, em Turpinière (Sennely – Loiret), quatro dias antes de comemormar o seu 74° aniversário. Na França, porém, sua notoriedade científica não resistiu ao tempo: à exceção de um círculo bastante restrito de botânicos ou de pesquisadores brasilianistas, hoje o nome de Auguste de Saint-Hilaire é praticamente desconhecido dos franceses (muitas vezes é confundido com Geoffroy de Saint-Hilaire, com quem não tem nenhum vínculo de parentesco), inclusive em sua cidade natal : a página do portal da Municipalidade de Orléans consagrada aos « personagens ilustres » não inclui Saint-Hilaire entre os notáveis orleanenses dos séculos XVIII e XIX.

No Brasil, ao contrário, o botânico jamais caiu no esquecimento . Segundo a Condessa d’Eu (a Princesa Isabel dos Brasileiros), no fim do século XIX o nome do sábio era « bem conhecido », e suas obras, « que fornerceram tantas informações sobre uma grande parte do país », gozavam havia muito tempo da « maior estima » . De fato, as edições francesas da obra de Saint-Hilaire têm figura de destaque no catálogo da Exposição de História do Brasil , realizado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1881. Em 1928, era inaugurado um « monumento » à sua memória – o busto - que pode ser contemplado em uma das alamedas do Jardim Botânico. Alguns anos mais tarde, pensou-se até em transferir as suas cinzas para o « panteão » nacional brasileiro – projeto improvável e que se revelou impossível de ser realizado. Em 1979, a Biblioteca Nacional prestava-lhe uma nova homenagem, realizando uma bela exposição comemorativa do bicentenário de seu nascimento que mereceu um artigo entusiasmado do poeta Carlos Drummond de Andrade. Nesta ocasião, vários outros escritores e intelectuais brasileiros destacaram as contribuições do grande « Augusto » às ciências naturais e humanas, assim como os laços afetivos que ele tecera com o país. É sem dúvida graças a isso que seu prolífico relato de viagens não cessou jamais de ser reeditado no Brasil.

Publicado em 2009

Legenda : Histoire des plantes les plus remarquables du Brésil et du Paraguay. A. de Saint-Hilaire. 1824

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